quinta-feira, junho 22, 2006

Coffee Break

Falaram durante cerca de meia-hora sobre assuntos sem qualquer interesse prolongado.
Basicamente, trocaram impressões sobre os países onde tinham estado, e para os quais gostavam de viajar. Luís chegou a mostrar-lhe um Netsuke feito á mão. Lídia observou o pequeno pedaço de madeira com atenção e maravilhou-se com a precisão artística com que fora esculpido. Ela, por outro lado, mostrou-lhe meio envergonhada, as lembranças que tinha trazido para os amigos e familiares. Uma caneca, peluches de duendes verdes com potes de ouro incluídos e carradas de porta-chaves com trevos.

- Não sou muito boa a escolher souvenirs - disse, em tom de desculpa. - Como nunca sei o que cada pessoa vai gostar ou odiar, limito-me a escolher as coisas mais comuns. Assim... tenho a certeza que toda a gente vai odiar! - gozou, e completou com uma careta.

Luís pareceu mais interessado na colecção de isqueiros. Lídia tinha, mesmo assim, trazido bastantes da Irlanda. Uma das bolsas do seu saco pequeno estava totalmente cheia de todo o tipo deles. Luís viu e experimentou cada um, divertindo-se á grande. Depois, voltou a arrumá-los e a conversa arrefeceu um pouco. Agora estavam um para cada lado, Luís ouvia música no leitor de MP3 de Lídia enquanto esta escrevia num bloco de papel. Passaram-se alguns minutos até um deles dizer algo. Foi Luís.

- Acho que se acabou a pilha. - disse, mostrando o MP3 - Tens mais?
- Não. Já vinha a ouvir com essas há dias. Deixa estar.
- Agora ficaste sem música para o resto da viagem. Desculpa lá.
- Não tens de pedir desculpa. - respondeu, distraída. - Guarda-o aí na minha mala.

Luís fez isso mesmo e depois sentou-se, aborrecido. Ficou a olhar pela janela um bocado. Lídia olhou para ele.

- É um bocado deprimente ficar a ver a paisagem passar, não é?
- O que queres dizer?
- Bem, todas essas pessoas e sítios que estão a ficar para trás a uma velocidade incrível. Não consigo deixar de pensar que é uma metáfora para a vida que nos passa ao lado. E isso deprime-me...um bocadinho.
- Uma metáfora? Como assim? Não é uma metáfora. É mesmo a vida a passar-te ao lado! Todo o tipo de coisas estão a acontecer e estás a passar por elas sem as ver ou sentir.
- Bem, sim... Mas é isso que eu quero dizer!
- Sim, eu percebi. Mas podes sempre pensar assim: para as pessoas que estão a ver este comboio passar, também há a sensação de estarem a perder qualquer coisa. De a vida lhes passar ao lado.
- E porque é que isso me devia fazer sentir melhor?
- Só te faz sentir melhor se achares que o que eles estão a perder é melhor do que o que tu estás a perder aqui sentada. Hã? Não acahs?
- É uma perspectiva parva.
- Bem, era uma ideia um bocado parva, para começar.
- Ok, pronto. Mas não tens dessas ideias parvas ás vezes? Não pensas em inutilidades assim?
- Não gosto de pensar. Principalmente em coisas tristes. Acaba sempre por me entristecer. Por isso, o melhor é não pensar...
- Boa teoria...
- O que é que estás a escrever afinal?
- Isto? Nada. É uma carta.
- Uma carta? Para quem?
- Para uma amiga minha na Irlanda.
- Já? Acabaste de vir de lá, certo?
- Sim! Mas já tenho saudades! É uma grande amiga!
- Estou a ver. E falas de mim na carta?
- Não me parece. - diz, sarcástica - Só falo de coisas "importantes".
- Ora essa! E então? Não sou uma coisa importante? Acabaste de ter um encontro amigável num comboio com um gajo que esteve no Japão! O que é mais importante que isso?
- Digamos que te considero mais um... acidente de percurso.
- Mas que má!

Lídia riu-se.

- Vá, até admito que estou aborrecida. Queres fazer alguma coisa? - disse, colocando de parte o bloco de papel.
- Claro! Tudo para quebrar este tédio! Não me dou muito bem em sítios onde não tenho nada para fazer. Fico... maluco.
- Ainda mais? Gostava de ver isso.
- Que engraçada.

Lidia levanta-se e olha pela janela.
- Estamos a chegar a uma estação. Não consigo ver o nome.
- E isso interessa? Desde que dê para sair um bocado deste comboio.
- Tens razão, vamos!

Estende-lhe a mão e puxa-o para cima. Depois, saem da cabine e percorrem as carruagens, onde alguns passageiros tiram as suas malas e vestem os casacos. Passam á frente de umas quantas pessoas e colocam-se em frente á porta. O comboio abranda lentamente e por fim pára. Abrem-se as portas e Lídia e Luís saem cá para fora, aliviados.

- Ahhh! Ar puro! Estava farto daquele sítio!
- A quem o dizes. Tenho as pernas dormentes.
- Precisas de andar, então. Vamos dar uma volta. Acho que há ali um café.
- Não tenho dinheiro, pá.
- Ora essa! Como se na minha presença, uma donzela fosse gastar dinheiro. Vá, anda daí!

Entraram no café, e Luís aproximou-se do balcão.

- O que é que queres beber? - perguntou a Lídia
- Um café sabia bem.
- Dois cafés, bom homem! Vamos sentar-nos lá fora?
- Pode ser.

Foi o que fizeram. O tempo estava limpo e quente, tal como deve estar numa tarde de início de Setembro. São os únicos naquelas mesas. Todas as outras pessoas tomam as suas bebidas ao balcão, apressadas. Mas um silêncio desconfortável instala-se entre Lídia e Luís assim que param para bebericar as suas chávenas. Lídia não acredita em silêncios desconfortáveis, por isso não faz nada para o quebrar. Luís, por outro lado, tem dificuldade em permanecer calado durante longos períodos de tempo. Antes de dizer o que quer que fosse, concentrou-se em colocar 6 ou 7 colheres de açucar no seu café, sob o olhar espantado de Lídia.

- Achas que é suficiente? - gozou, quando Luís acaba de pôr a sétima colher.
- Se queres saber, não sou grande apreciador de café. É demasiado amargo. Prefiro coisas mais doces.
- Eu também gosto de coisas doces, mas ás vezes sabe-me bem algo amargo, para despertar os sentidos. Mas se não gostas, porque é que bebes?
- Porque estou estafado e isto ajuda-me a espevitar. É a única coisa boa do café, para mim. Odeio estar... mole.
- Espevitar? hi hi hi. Não ouvia essa há um tempo. Mas vês? É esse o problema das pessoas.
- Qual?
- As pessoas não tratam o café como uma bebida a sério. É um instrumento. Só o bebem para se sentirem mais capazes. Não apreciam o gosto do café, nem o cheiro do café. Aliás, por isso é que é servido neste tamanho. Para as pessoas não terem de olhar para ele duas vezes.
- E claro que tu, vais contra essa corrente.
- Não sou a única, mas sim! Eu gosto de saborear o café. Bebo-o porque gosto do sabor.
- Também bebes águas gaseificadas?
- (risos) Não. Isso não. Mas é outra bebida marginalizada. Usada como ferramenta.
- Então é melhor termos cuidado antes que se revoltem. Odiaria ver isso. (risos)

Rindo-se também, Lídia dá mais um gole no café. Faz uma careta e poisa a chávena.

- Blargh! Claro que gosto de apreciar bom café, e não esta lama! Que horas são?
- Não tenho relógio. Porquê?

Um apito próximo do comboio deixa ambos em pânico.

- Por aquilo! Vamos!

Ao passarem pelo balcão, Luís atira meia dúzia de moedas ao empregado.

- Fique com o troco!

Correm o mais que podem até á porta e pulam para dentro, ofegantes. Olham um para o outro o riem-se todo o caminho até aos seus lugares.

- Bem, já tivémos uma aventura! - diz Luís, entusiasmado. - Não me digas que isso não é digno de ir para a tua carta?
- Ná! Vais ter de te esforçar mais.
- Pode ser. Quando é a próxima estação?
(riso de ambos)
- Por acaso, acho que esta era a última.
- Queres dizer...?
- Sim. Estamos quase a chegar. Agora não há mais paragens até ao Barreiro.
- Bem, já não era sem tempo. Está a anoitecer.
- Para onde é que vais, depois de chegares?
- Ainda não sei. Devo ficar em casa de um amigo. Ele vai ter uma surpresa. Não está á minha espera. E tu?
- (risos) Eu? Eu vou direitinha para casa, que tenho escola já amanhã. Aliás, hoje já devia lá estar. Estou-me a baldar. (careta)
- 12º Ano?
- Hum-hum... - confirma Lídia. - O mais difícil, não é o que dizem?
- Não sei...
- Claro. Aposto que tu não és propriamente o aluno exemplar, com as tuas viagens ao Japão e isso tudo.
- Pelo contrário. Sou o aluno perfeito. Porque nunca perco a vontade de aprender.
- Mas nunca puseste os pés numa escola.
- Bem... não.
- Foi o que pensei. Sabes, Luís, és um tipo mesmo estranho.
- Mas...?
- Mas é melhor do que viajar sozinha. (sorriso) Além disso, trazes comida e pagas-me cafés. Dadas as circunstâncias, podia ter-me calhado colega muito pior.
- Claro! Imagina se entrava por aí um drogado ou um violador?
- E o que me leva a pensar que não entrou?
- Engraçada, hã? És mesmo comediante. Se fosse má pessoa, não te empanturrava.
- Nunca ouviste falar da Hansel e Gretel? Mas já que falas em comida, não tens por aí mais surpresas nesse casacão? Talvez um antiácido para me tirar o gosto daquele café delicioso?
- Tenho... - prosurando nos bolsos - Tenho pastilhas! São de morango.
- Rapaz, adoro-te!
- Claro que sim... enquanto não se acabar as guloseimas.
(riem-se os dois)

O comboio segue rapidamente em direcção ao Barreiro, com dois passageiros divertidos no seu interior.