terça-feira, setembro 19, 2006

Can't you see them?





"Terça-feira, 14 de Julho de 2006


O meu nome é Rita. Não tenho outro, nem continuação. Só Rita. Por vezes posso parecer que tenho mais nomes, mas não passa tudo de imaginação, brincadeira, desempenhar papéis que não são mais que disfarces, máscaras.

Durante 3 anos e meio, estas folhas de papel foram casa de hóspedes desses personagens e de mim mesma, que no fundo é dizer uma e a mesma coisa, que sou eu. Todas as loucuras que me passaram pela cabeça foram assentadas com pena e tinta neste caderno vermelho, de cor desbotada. Não posso dizer o mesmo das loucuras de outros, como a Violeta ou o Microkid, principalmente ele, que nunca concordou com esta ideia. A Violeta achou uma boa medida, mas depressa se esqueceu de a pôr em prática, como se esquece de tudo o resto...

Há outros, muitos outros. Nem eu os conheço a todos. Ás vezes penso que são infinitos, que há um exército deles á espera de me substituir, ansiosos por andar ao Sol e á chuva. Mas não podem, não sem minha autorização, tenho de os manter na ordem ou seria o caos. Saltariam por todos os lados, entupiriam-me as artérias, roubar-me-iam as sinapses e espalhariam a desordem. Por isso têm de ficar quietos. Até eu os chamar.

E, no entanto, quem me garante que não sou apenas mais um? O que me leva a pensar que não passo de mais uma peça do puzzle, com manias de grandeza? Talvez a Rita exista tanto como a Violeta, ou o Homem-Fantasma, ou a Princesa Pi, etc, etc...

Mas não quero nem posso falar mais nisto. É só a minha imaginação a tentar que lhe prestem atenção. É tão egoísta! Odeio-a! Faz-me esquecer toda a gente, faz-me não ligar, não me interessar por nada! Afasta-me dos outros e por isso é que comecei a escrever esta página em primeiro lugar. Tenho de lutar contra ela, resistir-lhe. Se a conseguir enfrentar no território de papel, onde tem a vantagem, posso dizer que consegui alguma coisa. Ou não, não sei...

Pela última vez, a minha imaginação fez-me magoar alguém. Alguém de quem eu gostava muito. Era um bom rapaz, e tinha um nome engraçado, mas quando acabei com ele, não sabia como se chamava nem quem era.

Acho que o devorei.

Devorei-o por dentro, roubei-lhe tudo, pilhei-o até á última moeda de ouro. Quando acabei, era uma casca vazia. Mas isso não é o pior. O pior é que eu lembrei-me. Lembrei-me de ter feito uma coisa assim antes, lembrei-me de ter gostado.

Não me lembro a quem o fiz, não me lembro porquê...porquê..?

Desde que me chamaram louca, que os homens de bata me disseram que o meu não-sei-o-quê na parte de trás da cabeça era hiper-desenvolvido, blá blá blá. Desde aí que eu percebi que não ia ter direito a uma vida normal. Tinha só uns 5 anos, o que é que eu podia saber sobre uma vida normal? Bem, sabia uma coisa. Qualquer observação dessa vida teria de ser feita do lado de fora. Porque outra razão me estariam a dizer que era hiper? As coisas normais não são hiper, são normais. Porque é que me levaram ao homem de bata? Porque é que os meus pais pareciam tão preocupados? Não era normal. Logo, eu não era normal. Pura lógica.

Depois vieram os comprimidos, mas não tão comprimidos como a vida que eu estou a tentar espremer na tinta que resta nesta caneta preta. Eram amarelos e difíceis de engolir. Faziam-me engasgar, mas os meus pais não queriam saber. Tinham deixado de confiar em mim desde que souberam que eu era "diferente". A maior parte do tempo não me ligavam nenhuma, mas ás vezes precisavam que eu fizesse alguma coisa. Nessas alturas, fingiam carinho.

Depois batiam-me quando eu os vomitava. Ou quando eu não conseguia dormir. Ou quando não tinha fome mas ainda tiha comida no prato. Ou quando não me apetecia ir brincar com os meus amigos, ou quando tinha uma nota muito baixa na escola, ou quando tinha uma nota demasiado alta! Puniam-me por qualquer comportamento fora do padrão, fora do normal, portanto. Se eles soubessem... Se soubessem o que causaram, as... criaturas que libertaram. Uma por cada injustiça, uma por cada nódoa negra. Todas as noites, quando fingia dormir, abria-se uma porta e alguém vinha consolar-me. A princípio era só a Violeta. Coitada, era tão tímida e frágil, não fazia ideia de como me abraçar, sequer. Tive de lhe ensinar tudo. A falar baixinho, a dar beijinhos, a dormir quietinha. Ela ganhou a minha confiança, e atraiu outros. Todas as noites, o meu quarto abarrotava enquanto os meus pais ressonavam num sono sem sonhos. Jogava com eles, brincava, dançava, tudo em silêncio, sem um som. Claro que nem todos gostavam de mim. Mas mesmo os que me desprezavam mantinham-se enconstados á parede, observando.

Aos 12 anos, tive a minha primeira crise. Estava no recreio da minha escola. Sozinha, como sempre. Estava a chorar. O Monstro tinha dito alguma coisa que me fez chorar. Lembro-me de estar zangada com ele. Gritei com ele, mas não me ouviu. Bati-lhe, mas chorei ainda mais, agora doía-me a perna. Uma professora aproximou-se de mim. Não a ouvi chegar-se. Mas o Monstro ouviu. Tentei salvá-la, tentei dizer-lhe pra não se chegar. Mas ela agarrou-me o ombro e ele atacou. Mordeu-lhe a mão com tanta força, que foram precisos dois funcionários para a soltar. Só que já não era uma mão. Era um apêndice inchado e vermelho que pulsava. Senti-me a desmaiar ali mesmo. Quando voltei do hospital, tinha passado uma semana. Levei tanta porrada que voltei lá passados dois dias.

Entretanto o Apolinário anda por aí, enquanto eu não faço mais que escrever as minhas memórias. Talvez ajude. Acho que tenho sobretudo medo de morrer. Não, não é bem isso. Tenho antes medo de ser esquecida. Tenho medo de ser anónima. De não me distinguirem numa multidão. Mas o Apolinário anda por aí. Deve ter medo também.

Desculpa.

continua..."