terça-feira, maio 30, 2006

Cherry


ATENÇÃO: este excerto passa-se antes de tudo o que já escrevi desta história, seja no meu blog ou fotolog. isto faz parte do começo. enjoy :)

Ninguém disse uma palavra durante a viagem de carro. Lídia limitava-se a olhar pela janela, para os lindos campos irlandeses, cheios de verde até onde a vista alcançava. Apesar de a encherem de receio sempre que se encontrava sozinha na sua vastidão, sempre era melhor que olhar para o seu lado e ver as lágrimas de Rute. Ela era daquelas pessoas que mostrava sempre o que sentia e neste momento não conseguia parar de soluçar. Lídia temia que, se olhasse para ela, não tardaria muito a fazer-lhe companhia no choro.

Quem parecia mais calmo era o primo de Rute, Cass, que ia a conduzir o carro, um Honda prateado de que tinha muito orgulho. Era a personagem mais enigmática no carro. O único que Lídia não tinha compreendido inteiramente ao longo da semana que passou na sua companhia. Em certas alturas, parecia completamente ausente, como se estivesse a pensar em coisas imensamente mais importantes. Mesmo assim, na noite em que apanhou aquela grande bebedeira, que até vomitou todo o caminho para casa, foi ele quem ficou com ela e lhe segurou a cabeça quando as entranhas pareciam querer sair e dar um passeio. E conversaram toda a noite. Sobre o quê, é que já é mais difícil recordar. Estava bastante "tocada" pela loucura dos bares irlandeses.

Ao lado de Cass, no lugar do morto (Lídia adorava esta expressão) ia Aileen, a madrasta de Rute. O pai tinha casado com a mãe de Rute em Portugal, mas tiveram problemas e divorciaram-se. Depois disso, conheceu Aileen e vieram morar para a Irlanda, quando Rute tinha 7 anos. Nessa altura, ela e Lídia eram melhores amigas e faziam tudo juntas. As maiores dores que Lídia já sentiu foram na alma, quando Rute lhe disse que tinha de partir. Eram duas raparigas bastante diferentes, mas deram-se bem desde que se viram pela primeira vez. Rute tem cabelo castanho e óculos. É pálida como um fantasma, e parece-se com um quando usa os vestidos longos pretos que tanto gosta. Já Lídia tem cabelo de corvo e uma postura mais descontraída. Neste momento veste-se com umas jeans e uma camisola ás riscas pretas e brancas. Tem uma cara de criança traquina, com um nariz empinado e um sorriso maroto.

Pararam em frente á estação do Ferry. Lídia saiu e ficou fascinada com aquele braço de mar que a separava do continente. Cass levou-lhe as malas para o barco e Aileen foi comprar o bilhete. Lídia sentou-se numa colina e inspirou o ar puro. Rute fez-lhe companhia, ainda limpando os olhos. Olharam uma para a outra e não disseram nada. Simplesmente abraçaram-se durante muito tempo, até Aileen as chamar.

Lídia apressou-se a escolher um lugar á janela, para não perder de vista os seus amigos. Colocou a cabeça entre os braços e ficou a olhar para eles, tão lindos com a paisagem campestre atrás. Dava uma excelente fotografia. Pena que Lídia não gosta de fotografias. Fazem-na triste. Como agora...

Quando o barco apita a partida, Rute acena vigorosamente o braço, em sinal de adeus. Lídia imita-a, finalmente deixando as lágrimas cair com vigor. Cass limita-se a fazer uma saudação e Aileen sorri. Lídia memoriza aqueles rostos para não os esquecer nunca. O barco afasta-se e rapidamente, ela deixa de os ver. Quando se apercebe que já não acena a ninguém em particular, recolhe-se e deita-se no banco a ouvir música num leitor de MP3. É uma longa viagem até Roscoff, na França. E depois o Barreiro...

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Interlúdio: A Wolf At The Door

Acordou num sobressalto. Olhou em redor e só via a cabine do comboio escura e sombria. Lá fora, a paisagem corria atrás das cortinas vermelhas, iluminadas pelo brilho do nascer do Sol. Tinha o braço dormente por ter estado deitada em cima dele. Cheia de frio, retirou o casaco da mala e tapou-se. Estava exausta. Andava a viajar há 3 dias sem dormir ou comer decentemente. Mas estava feliz. Podia ter a memória turva mas lembra-se de ter visto as paisagens de Espanha ontem á noite, antes de adormecer. O que queria dizer que devia chegar ainda hoje a casa. Finalmente. Já tinha saudades dos pais e do irmão. A mãe devia ter passado uma semana stressante, com a filha noutro país. Era mesmo mãe-galinha, mas sempre a tinha deixado ir nesta aventura. Depois de muito pedinchar, claro.

Encontrou umas bolachas insípidas no bolso do casaco e comeu-as, enquanto se tentava lembrar do sonho que a fez despertar tão bruscamente. Só conseguia ver na cabeça uma menininha, de vestido vermelho e cabelo preto, muito parecida com ela. E estava a olhar para algo, á porta de seu casa. Era um animal qualquer, um cão talvez. Ele estava de pé, como que a guardar a porta, um sentinela. Mas ela não tinha medo, estava calmissíma. Até estendeu a mão para lhe fazer uma festa na cabeça. Quando os dedos já tocavam no pêlo escuro e grosso, ele saltou! E depois disso acordou. Estranho. Entretanto, com tanto esforço mental e com um estômago vazio, Lídia voltou a adormecer no banco.

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Quando voltou a despertar, fê-lo com a maior calma do mundo. "É para compensar pelo susto de há pouco", pensou. Agora já eram pelo menos uma 11 da manhã, e a barriga estava tão oca que doía. Com uma mão sobre o umbigo, para acalmar a fera, procurou em todos os bolsos mais algumas daquelas bolachas sonsas, sempre era melhor que nada. Claro que podia ir ao bar do comboio ou comprar algo na próxima estação, mas a verdade é que não lhe agradava nada a ideia de deixar a cabine com as suas coisas.

Não encontrou comida, mas sim um isqueiro cor-de-latão. Ela não fumava, pelo menos agora. Mas aos doze anos decidiu experimentar para ver como era. Não deixou de o fazer até os pais descobrirem, aos 15. Mesmo assim, gostava de coleccionar isqueiros e sentir o peso de cada um na mão. Acendê-los e ver a chama dançar. Nos dias em que se sentia mais melancólica, aproximava a mão só o suficiente para sentir a queimar. Este tinha sido um presente de Cass, quando soube da sua mania. A de coleccionar, claro, não a outra. Era comprido e simétrico como um isqueiro deve ser. Tinha uma imagem de um trevo em relevo. Lídia divertiu-se a acendê-lo e apagá-lo umas quantas vezes para enganar a fome. Fartou-se depressa e, ao fim de um bocado, fazia-o mais por teimosia que por outra coisa.

Foi então que a porta da cabine se abriu com um deslizar suave. Lídia guardou o isqueiro. Um rapaz da sua idade olhava para dentro do compartimento. Era moreno e tinha o cabelo num rabo-de-cavalo. O fato azul, gasto, que usava não condizia com os ténis brancos, nem com a mala colorida, cheia de autocolantes e nem com a gravata vermelha berrante. O olhar meio-alucinado e uma boca cheia de uma substância branca cremosa completavam o personagem bizarro. Falou numa voz relaxada.

- Estás sozinha? Importas-te que fique aqui? O resto está tudo cheio.
- Não, estás á vontade.

O que havia de dizer? Não podia proibi-lo de se sentar ali. Era muito egoísmo pensar em ter a cabine só para ela. O rapaz fechou a porta, guardou a mala no canto e sentou-se á janela, de frente para Lídia. Enquanto fazia isto, ela colocava os fones do leitor de MP3 nos ouvidos, para evitar qualquer tentativa de conversa. O rapaz sentou-se.
Apressou-se a colocar a mão dentro do casaco comprido que lhe chegava aos joelhos e retirou de lá uma caixa de cartão. Abriu-a, com olhar guloso. Lá dentro estavam bolos compridos, colocados geometricamente. Sem qualquer cerimónia, agarrou num e colocou-o inteiro na boca, mastigando vorazmente. Ao mesmo tempo, emitia sons de prazer e delícia, com os olhos fechados. Lambuzava-se todo com o doce.
Lídia tinha dificuldade em desviar o olhar ou concentrar-se na música com este espectáculo decadente mesmo ali. Ele engolia tão depressa que engasgava-se facilmente e tinha de bater vigorosamente com a mão no peito.

Quando acabou, parecia que tinha acabado de fazer sexo ou coisa parecida. Foi então que olhou para a colega de cabine. Lídia apressou-se a desviar o olhar para a paisagem. Ele estendeu-lhe a caixa dos bolos.

- Queres um? São deliciosos!

Ela hesita.

- Vá lá! Tira um.

Sem paciência para contrariar malucos, Lídia aceitou. Assim que cumpriu a função de cortesia, o rapaz meteu mais dois na boca e devorou-os ruidosamente. Lídia deixou escapar um riso de crítica.

- Gostas mesmo destas coisas.
- É divinal! Nunca provei nada tão bom! (engole, com dificuldade) Desculpa as minhas maneiras - disse, limpando as mãos num guardanapo estendendo-lhe a direita - Sou o Luís.
- Lídia - responde, apertando-lhe a mão - Hem... Luís... tens uma coisa aqui (aponta com o dedo para o canto do lábio)

Luís não faz nada por um momento. Depois, tenta olhar para a própria cara e lambe o local indicado. Sorri satisfeito. Parece uma criancinha.

- Está melhor?
- Está. Obrigada pelo bolo.
- Tinhas cara de ter fome. Estás a viajar há muito tempo?
- Estou neste comboio há 3 dias. Porquê? Nota-se?
- Hum... Isso depende. Tens sempre essa cara tão bonita?

Lídia dá uma gargalhada irónica. O tom de voz dela modificou-se rapidamente para áspero e agressivo.

- Vai gozar com outra pá! Quem é que pensas que és? Só porque entraste na minha cabine, não quer dizer que me possas engatar! Não me parece mesmo nada.

Lídia não tem paciência para pessoas inúteis. É o que ela lhes chama. Aquela gente que só mete conversa com um objectivo em mente. Por isso é que os provoca o mais possível, para ver o que fazem quando percebem que não levam nada dela. A maioria abandona a conversa, ou vai-se mesmo embora dali. Não foi o que aconteceu com Luís, que simplesmente colocou uma cara de inevitabilidade e disse:

- Bolas! Eu bem tentei. Que tal mais um bolinho para a causa nobre?
- Acho que não. - sentiu uma certa satisfação com a reacção de Luís.
- Ainda bem. Não és a única com fome, sabes? Se não tivesse comprado isto na última estação, a esta altura já tinha desmaiado. Só espero que cheguemos depressa ao Barreiro.
- Também vais para o Barreiro? - perguntou, surpresa.
- Vou. Tu também?
- Sim. Moras lá? Ou estás só de passagem?
- Podiam ser ambos. Mas não moro lá. Vou só ter com uns amigos. A julgar pela bagagem que levas, diria que tu tens alguém á tua espera.
- Sim. Devem estar ansiosos. Não me vêem há uma semana.
- Onde estiveste?
- Irlanda. Já lá foste?
- Hum... acho que nunca passei por lá.
- Achas? Então? De onde é que tu vens?
- Bem, não venho propriamente de um sítio específico. Ando por aqui e ali já há uns bons 3 anos.
- 3 anos?! Os teus pais deixaram-te fazer uma viagem dessas?!
- Esqueci-os. Ninguém manda em mim. Os meus pais abandonaram-me cedo, desistiram de mim, por isso abandonei-os assim que pude. Decidi que não tenho pais, tenho professores. Quando deixam de ter algo para me ensinar, vou-me embora.
- Boa filosofia. Às vezes gostava de esquecer os meus pais.(sorri) E onde é que estiveste este tempo todo?
- Bem, maior parte do tempo estive no Japão. Mas também vi o resto da Ásia e a Europa de Leste. Depois, passei por o que quer que estivesse no caminho até onde estou agora.
- Uau! Tiro-te o chapéu. Quem me dera poder viajar assim. Mesmo para ter esta semana tive de fazer loucuras e mesmo assim os meus pais fizeram cara feia. És um sortudo.
- Digo-te já que é extremamente desconfortável andar 3 anos de comboio.
- Comboio? Porque é que não foste de avião?
- Minha cara, eu sou livre, mas não sou rico. Além disso, não gosto de voar.

Coloca novamente a mão dentro do longo casaco e retira de lá duas garrafas de Coca-Cola. Estende uma a Lídia.

- Tens sede?
- És cheio de surpresas, tu! (pega na garrafa)
- Tudo para agradar uma certa rapariga.
- (rindo-se) Já te avisei para parares com isso. Não sou dessas que vai com o primeiro tipo que aparece ou que beija no primeiro encontro ou essas tretas todas.

Todo este diálogo tinha deixado Lídia confusa mas, de certo modo, bem-disposta. Falar com este rapaz tinha-a animado, de alguma maneira. Reflectindo nestes acasos da vida, Lídia deu um gole na Coca-Cola.


(eu sei que está grande, mas se não têm tempo, voltem outro dia e leiam mais um bocado. espero que cheguem até aqui e comentem o que pensam. =D)

segunda-feira, maio 22, 2006

Mountain Skull

Luís vestia-se discretamente, e, se o visse na rua, provavelmente não olhava para ele duas vezes. Calças pretas com uma camisa branca insípida e uns ténis azul-escuro imperceptíveis por baixo da dobra das calças, que eram obviamente um número acima. Nenhum adorno inútil ou algo que se distinguisse. Para evitar que o cabelo lhe caísse no rosto cor-de-avelã e de aspecto matreiro, usava-o como rabo-de-cavalo. Se me fazia lembrar alguma coisa, era um desses artistas da beat generation que proclamam poesia em bares nova-iorquinos.
Puxou para cima da mesa um saco de plástico e de lá de dentro retirou um disco de vinil embrulhado numa capa transparente. Entregou-a ao rapaz de olhos azuis.

- Toma. Trouxe-te uma coisinha interessante. Vai lá pô-la a tocar.

O rapaz de olhos azuis obedeceu. Depois, o poeta virou-se para mim.

- Espero que não te importes, mas gosto muito mais de contar uma história com boa música de fundo. Tu gostas de música?
- Sim. - respondi.
- Bem me parecia. Costumas ouvir o quê? Rock? Pop? Tecno?
- Mais rock que outra coisa. - sentia-me mais animado a falar com este interlocutor aberto e simpático. Transmitia uma certa calma na maneira como prolongava as palavras.
- Também gosto muito de rock, mas para certas ocasiões são necessárias certas músicas. Por isso, como esta é uma ocasião importante, achei que música clássica seria o mais adequado. Conheces alguma música clássica?
- Mais ou menos. Já ouvi Beethoven, Mozart...
- Os pesos-pesados, não é? Bem, o que vai tocar agora é um pouco menos grandioso. Mas nem por isso menos belo.
- Quem é?
- Chama-se Schubert. Franz Schubert, acho eu. Ouve.

Abri bem os ouvidos para ouvir a agulha do gira-discos tocar levemente o o vinil e o tranquilizante crepitar do microfone nas colunas de madeira. Poucos segundos depois, chegou a música, quase tímida, a toques de piano e violino. Era calma, nada de grandes movimentos ou instrumentos pesados. Simplesmente aquele piano e violino, que pareciam manter um diálogo entre eles. O rapaz fechou os olhos e deixou-se embalar. Quando os abriu novamente, exibia um sorriso.

- Lindo, não é?
Acenei afirmativamente com a cabeça.
- Agora que estamos instalados, podemos ir ao que interessa. Como te disse, antes de fazeres perguntas, tenho uma história para te contar. Peço-te que prestes atenção, é muito importante. Podes não percebê-la agora, mas quero que fiques com as palavras gravadas na tua mente, exactamente como eu te as disse. Ok? Preciso da tua total concentracção. Fazes-me este favor? Depois respondo a tudo o que quiseres.
- Ok.
- Bem, uma pessoa contou-me esta história há algum tempo. É apenas um fragmento de uma lenda maior, mas, infelizmente, há muito perdida. Fala de dois budistas: um mestre e um pupilo. O mestre leva o seu aluno numa viagem de auto-descoberta e, ao fim de muitos dias de caminhada, chegam ao sopé de uma montanha. Era um local inóspito, sem qualquer sinal de vida, apenas desolação. Foi então que o mestre, Bodhisattva, disse:
" - Aquilo que pediste para ver ser-te-á mostrado. Mas o local da visão é longíquo e o caminho é longo e duro. Segue-me e não temas. Ser-te-ão dadas forças."
O aluno não colocou quaiquer objecções, e começaram a subir a montanha. Não era tarefa fácil, pois nã havia caminho definido nem plantas para se agarrarem. O próprio chão parecia inseguro, frágil e, de vez em quando, pedaços soltavam-se e ecoavam enquanto rolavam montanha abaixo. Além disso, uma neblina cobria tudo á frente dos olhos dos dois homens e não os deixava ver nada.

O rapaz de olhos azuis sorria troçando da forma como o outro parecia empolgado em contar a história, criando uma atmosfera de mistério.

- Mais uma vez, o mestre voltou-se para o aluno e disse:
" - Não temas, meu filho. Perigo não existe, apesar de o caminho ser assustador."
Continuaram a escalar e em breve anoiteceu mas eles não se demoveram. Debaixo das estrelas eles caminharam e o mestre apenas dizia:
" - Há que continuar! Não percamos tempo! A reunião é ainda muito longe daqui!"
Na escuridão, chamas que se acendiam e apagavam no mesmo instante começavam a assustar o jovem peregrino. Mas mesmo assim, não se queixou.

Aqui, o rapaz fez uma pausa, presumivelmente dramática.

- Mas, quando o Sol surgiu por trás do horizonte... o aluno gritou...
AaaahhhhhhhH!!!!!!!

O Luís estava em cima da mesa a berrar para cima de mim e eu quase caí da cadeira com o susto. O meu coração batia desenfreadamente com a surpresa. Luís riu-se.

- Desculpa, mas tinha de ver se estavas com atenção. Sabes o que o peregrino viu?
- N-não. - a minha voz era insegura e respirava lentamente.
- Bem, ele olhou para baixo e viu que o chão em que pisava, toda a montanha, era feita nada mais nada menos que de crânios. Milhares de crânios humanos era o que eles pisavam. Foi então que chorou ao mestre:
" - Mestre! Tenho medo!"
e o mestre respondeu:
" - Não temas! Olha em tua volta e debaixo de ti! Diz-me o que vês!"
e o aluno, assustadíssimo:
" - Não me atrevo mestre! Tudo o que me rodeia são crânios de homens! Tenho medo!"
e o mestre, sabiamente:
" - E no entanto, não compreendes. Não sabes do que esta montanha é feita! Fica sabendo, jovem, que cada um destes crânios é teu! Cada um esteve em alguma altura nos teus sonhos e fantasias! Nenhum pertence a outra criatura. Eles são tu e tu és eles!"

Luís parou, fechando os olhos. Olhei para o rapaz de olhos azuis, que tinha ido á cozinha fazer algo á procura de um sinal, mas nada. Ao fim de 2 minutos sem qualquer reacção, atrevi-me a perguntar.

- Já acabou?

Ele abriu os olhos.

- A história. Já acabou?
- Sim, já acabou.
- Não percebi.
- Não esperava que apanhasses á primeira. Ok, se calhar tinha essa possibilidade em mente, mas não era muito provável. O importante é isto: memorizaste-a?
- Sim, acho que sim.
- Óptimo! O resto virá por si só. Agora, penso que tens perguntas para mim. Já deves saber que me chamo Luís. Não te digo um segundo nome porque não tenho mais nenhum. Mesmo assim, estou em melhores condições que ali o tótó, que nem primeiro nome tem. Não é verdade?

O rapaz de olhos azuis não respondeu. Limitou-se a abandonar a cozinha e veio sentar-se na poltrona, a alguns metros de nós.

- E também não fala muito. Tu é que tens sorte, logo quatro nomes. (nome a designar)
- Como é que sabem o meu nome?
- Sei-o como sei que se me cortar magoo-me. Aprendi á muito tempo. Porque é que chamas tartaruga a cada tartaruga que vês? Seguindo a mesma lógica, chamo (nome a designar) a cada (nome a designar) que vejo. E já vi mais do que pensas.

Uma elevação de piano preencheu a sala. Por fim, um de nós disse algo.

- Quem são vocês?
- Isso não te posso responder. Não leves a mal, mas não é por teimosia. Não tenho a resposta a essa pergunta. É algo que terás de descobrir.
- Isso não é justo! Disseste que podia perguntar o que quisesse e respondias! Estás só a escapar-te!
- O que respondias se EU te perguntasse quem és?
- Dizia o meu nome...
- Já to disse.
- ..., o que faço, as minhas intenções...
- Então porque não perguntas simplesmente o que eu faço e quais são as minhas intenções? Achas que estão tão intrínsecas em mim que não podem viver sozinhas? Eu digo-te o que faço. Eu aprendo. É essa a minha função. Não sei fazer outra coisa. Por isso, sou um aluno perfeito. As minhas intenções? As mesmas que as tuas. Sobreviver. Faço questão de viver até morrer, o que espero adiar o mais possível. Até lá, é o que acontecer.

O tom majestoso dos violoncelos diminui até sobrar apenas um tímido arranhar de violino. Eu levanto-me.

- Posso-me ir embora?
- Claro, ninguém te mantém aqui contra-vontade. Suponho que essa seja a tua última pergunta, então.
Aceno afirmativamente. Viro as costas ás duas estranhas personagens e dirijo-me á porta.

- Espera! - diz Luís.
- O que foi?
- És livre de voltar amanhã á mesma hora, se te apetecer. O tótó nunca sai daqui e eu costumo aparecer por cá. É um favor que te peço. Ainda há coisas que gostava de te explicar.

Não lhe respondo. Abro a porta e saio para um corredor decrépito com canos expostos e ferrugem por todo o lado. Encontro o caminho para baixo e para fora e em breve estou na rua, escura ás quase 8 da noite. Corro para apanhar o primeiro autocarro que vejo.

- Achas que volta? - levanta-se o tótó da poltrona e senta-se ao computador.
- Tenho confiança que sim. Ele é diferente do que o imaginava mas todos os básicos estão lá. Vai voltar.
- Da maneira como tu o assustaste, naõ me surpreendia nada que nunca mais cá pusesse os pés.
- A entoação faz o poeta... Ele esteve no quarto do Bob, não foi?
- Sim.
- Disse alguma coisa sobre isso?
- Não. Acho que estava demasiado chocado.
- Ainda era cedo para ele ver aquilo.
- Bem, se não te tivesses atrasado, não teríamos esse problema, não é verdade? Onde estiveste?
- Com a Lídia.
- Outra vez?
- O amor não escolhe hora. Devias tentar apaixonar-te um dia destes. Não te fazia mal nenhum. É melhor do que estar fechado neste pardieiro todo o santo dia.
- Não me queixo. Eu GOSTO de estar aqui. As pessoas confundem-me. Não consigo pensar como deve ser com pessoas ao pé.
- Pensas demasiado. Como agora. Vais mesmo começar a teclar infernalmente nessa coisa com uma melodia tão bonita a tocar? Sente este Allegro.
- Para mim são só notas.
- É impossível conversar contigo. Não tens gosto nenhum. Vou-me embora.
- Agora?
- Como eu disse, o amor não escolhe hora. Vou ver a minha Lídia. Adeus.

Fecha a porta e deixa o rapaz de olhos azuis sozinho, iluminado apenas pelo monitor do computador. Em silêncio, deixa a música chegar ao fim e a agulha levantar-se sem se mover.

(hum... não tenho bem a certeza que nome hei-de dar ao personagem. a princípio pensei em dar-lhe o meu nome, mas descobri agora que me quero afastar desta personagem, apesar de lhe dar muito de mim. algumas sugestões? tem de ter 4 nomes e há preferência a Joões ou que as iniciais formem JAAS)ok, pronto, qualquer nome interessante serve. parvos tb :)

sábado, maio 13, 2006

Rubik


Não lhe perguntei mais nada. Não valia a pena. Depois de dez minutos de conversa inútil, não tinha ficado nada a saber da pessoa que me olhava do outro lado da mesa ou da situação em que me encontrava. Qualquer pergunta que lhe fizesse, ele defendia-se dizendo sempre a mesma coisa.

- Não posso. É parte da história. Ele depois conta-te.

Por isso, ali ficámos, calados, escutando apenas os ruídos da cidade lá fora, o som dos carros a buzinas e das conversas perdidas de alguém. Via o Sol descer lentamente atrás das tábuas na janela e tentava adivinhar as horas. "Já devem ser pelo menos 7 e meia", pensava, preocupado. "Os meus pais devem estar em pânico. Era suposto estar em casa há horas". Mas, apesar de me custar fazê-los sofrer assim, não fiz qualquer menção de me ir embora. Isto, no meu ponto de vista, podia dever-se a duas coisas: 1) tinha algum receio de tentar abandonar este sítio, talvez por temer a reacção do rapaz que me mantinha aqui como se fosse uma tarefa que lhe fora atribuída e 2) não posso negar que o meu espírito tinha curiosidade em saber o que estava ali a fazer, porque tinha sido conduzido pelos eventos a este cenário grotesco e colocado nesta posição. De quem estávamos á espera e que história tinha para me contar. Como é que me envolvia a mim?! Por isso, fiquei e lutei contra mim mesmo para parecer o mais calmo e sereno possível, acalmando a tempestade de nervos que ia crescendo com o passar dos minutos dentro do meu peito. Olhei para a frente. Todo este tempo, o rapaz nunca tinha tirado os olhos da minha pessoa. Cravava-me aquelas órbitas de sapo na mente, analisando, estudando e só quebrava a sua concentracção quando as circunstâncias o levavam a piscar os olhos, o que mesmo assim parecia acontecer apenas de 5 em 5 minutos. Eu limitava-me a engolir em seco e a desviar a minha atenção para outras paisagens do apartamento. Por fim, ele levantou-se.

- Lembrei-me de uma coisa. Volto já. Não saias daí.

Não lhe respondi, mas ele parecia certo que eu não iria a lado nenhum. Dirigiu-se à porta por onde tínhamos entrado e abriu-a novamente, para depois se perder mais uma vez no corredor branco. Senti um alívio quando a fechou atrás dele. A solidão acalmava-me um pouco, agora já não me sentia observado. Aproveitei para me tentar levantar. Calmamente, apoiei os braços nos lados da cadeira e ergui-me uns centímetros do assento. Ainda tinha as pernas dormentes, como quando nos sentamos de cócoras durante muito tempo. Não sentia o chão em que pisava, por isso ia-me agarrando a tudo o que encontrava, na minha tentativa de não perder o equilíbrio. Ajoeilhei-me, esfreguei as pernas e belisquei-as até começar a sentir alguma coisa. Depois disso, a sensação foi aumentando por si só e já conseguia andar. Afastei-me da mesa e comecei a explorar o espaço. Além da zona onde se encontrava a cozinha, as cadeiras e tudo isso, havia outro canto, mais escuro, que me escapou quando entrei. Era mais abafado e estava cheio de tralha empilhada e tapada com lençóis. Pelo menos maior parte. Havia caixotes com brinquedos partidos e toda a espécie de pequenos aparelhos estragados. Chegava mesmo a ver uma máquina de lavar roupa, esquecida debaixo de um velho divã a cair de podre. Num desses caixotes, encontrei um rasgo colorido que me chamou a atenção. Fui cuidadoso a colocar a mão e retirei de lá um pequeno cubo com pequenos quadradinhos autocolantes a cobrir as faces. Reconheci imediatamente como sendo um cubo de Rubik, daqueles quebra-cabeças quase impossíveis que fez furor nos anos 80. Quando era novo, tinha tido um, mas nunca o tinha conseguido resolver por isso tinha-me farto dele rapidamente. Agora, sentia-me nostálgico, por isso comecei a decifrá-lo, rodando as faces de cá para lá, de lá para cá e assim por diante. Fiquei viciado com o jogo e dava por mim a girá-lo ao acaso, sem reflectir no movimento mais acertado para o resolver. Assim estava eu tão entretido, que não dei pela porta no outro lado do apartamento, que se abra lentamente. Também não vi a figura que entrou até se dirigir a mim e me tocar no ombro. Nesse momento, assustei-me e deixei cair o cubo.

- Ei! Tem calma! Ninguém te quer fazer mal. - disse um outro rapaz, com uma voz suave e relaxada. Abaixou-se para apanhar o cubo, e observou-o na mão. Depois, olhou para mim, sentado no chão.

- Desculpa se te fiz esperar. Sou o Luís.

Estendeu a mão num cumprimento, mas não lhe consegui retribuir. As minhas pernas pareciam ter perdido novamente todas as forças com o susto e era-me impossível levantar do chão. Contudo, o Luís parecia ter levado aquilo como um insulto.

- Não tens de me cumprimentar, se não quiseres. Mas não te fiz nada de mal, pois não? Não sei o que o tótó te disse, mas só queremos conversar contigo. Depois, podes-te ir embora.

- Não é isso... - murmurei, sem o olhar nos olhos.
- Hum...?
- Não me consigo levantar. As minhas pernas estão dormentes.
- A sério? - parecia divertido - Como é que isso aconteceu?
- Foi por causa de qualquer coisa que o outro rapaz me deu ou algo assim. Caí no chão e vomitei. Depois, fiquei com o corpo todo dormente.

O sorriso desapareceu rapidamente.

- Dizes que foi o outro rapaz que te fez isso?
- Bem,... sim. Acho que sim.

Foi por essa altura que se ouviu o som de uma porta, indicando o regresso do rapaz de olhos azuis. Esfregava o braço esquerdo, que estava vermelho e falava consigo próprio, lançando pragas a Bob, provavelmente. Olhou para a mesa e parou quando não me encontrou lá.

- Ei! - gritou o outro rapaz.

Isso chamou-lhe a atenção para nós. Caminhou na nossa direcção.

- Ah. Já chegaste. Vens atra...
- És capaz de me explicar - interrompeu - porque é que eu viro as costas um par de horas e tu quase matas o pobre rapaz?!

O rapaz de olhos azuis olhou para ele e depois para mim, tentando compreender.

- Porque é que estás sentado no chão?
- Como se tu não soubesses, idiota! O que é que eu te disse antes de me ir embora?! Nada de drogas! Queria que ele estivesse sóbrio!
- Mas eu não lhe dei nada!
- Não é o que ele diz!

O rapaz de olhos azuis olha novamente para mim.

- Qual é a tua? Eu não te fiz nada.
- Como assim? Eu quase desmaiei. Ali mesmo, há bocado.
- A culpa disso foi só tua!
- Não grites com ele! Se fizeste merda, a culpa é tua!
- Já te disse que não fiz nada! Ele ficou assim porque é estúpido. Quando eu entrei aqui, ele foi-se esconder na Sala dos Relógios e respirou o ar do corredor. Eu trouxe-o de volta e fi-lo vomitar a mistura toda, mas é claro que ainda sente os efeitos. Já sabes como as pessoas não estão habituadas áquilo. Aconteceu o mesmo ao Apolinário.

Sobressaltei-me quando ouvi o nome do meu amigo.

- Apolinário?! - exclamei - O Apolinário esteve aqui?!

Ambos me olharam de cima. O segundo rapaz colocou um ar pensativo enquanto continuava a lançar o cubo de Rubik de uma mão para a outra.

- Ok - disse, por fim, com um sorriso.
- Ok o quê? - perguntou o rapaz de olhos azuis.
- Ok. Está tudo bem. Não há crise. Não tiveste culpa. - passou-lhe o cubo para as mãos.
- Eu... o quê? Eu sei que não tive culpa! Eu salvei-lhe a vida!
- Fixe.
- Fixe?
- Ei! Eu fiz uma pergunta e estou farto que não me respondam a nada aqui! Como é que conhecem o Apoliário?
- Calma. Calma. - disse-me o segundo rapaz. - Já cá estou, podemos começar. - dirigindo-se ao rapaz de olhos azuis - Ajuda-o a levantar-se e trá-lo aqui para a mesa. Sempre estamos mais confortáveis.

Com alguma relutância, o rapaz de olhos azuis obedeceu. Poisou o cubo na caixa onde o encontrei e, pegou em mim como se eu fosse um inválido e arrastou-me sem qualquer delicadeza para a cadeira mais próxima. Sentou-se ao meu lado esquerdo e em minha frente já estava o outro rapaz.

terça-feira, maio 09, 2006

Hot Milk


- Desculpa! Desculpa! Peço muitas desculpas! - exclamava o rapaz de olhos azuis enquanto se dirigia á cozinha para encher um copo de água, depois de se ter certificado que eu me aguentava na cadeira sem cair.

- Toma. Bebe. Fui muito estúpido por não me lembrar, mas a culpa também foi tua. Não tinhas nada que fugir para ali. A mistura ainda não é perfeita e faz mal a quem não está habituado. Na verdade, podias até ter morrido se ficasses lá mais tempo. E depois ficava tudo estragado. Realmente, não sei como pude ser tão distraído.

Não fazia a mínima ideia do que ele estava para ali a falar, mas a água fresca soube-me bem para acalmar as entranhas ardentes. Bebi tão avidamente que encharquei a camisola com o líquido que não conseguia meter na boca.

- Estás melhor? - continuou o rapaz - Não te dou mais àgua porque não sei o que pode fazer á mistura dentro do organismo. Mas acho que podes beber leite. Sim! Sim! Leite não faz mal! É orgânico! Volto já!

Tirou-me o copo das mãos com violência e abandonou-me para regressar para trás do balcão, abrir uma espécie de frigorífico minúsculo e aquecer o conteúdo de uma vasilha que de lá retirou.
Eu ainda não tinha recuperado completamente. A minha boca estava sequíssima e não parava de molhar os lábios com a língua, o que só piorava a sensação. A sensação de bem-estar parecia muito distante, agora que me ardia o o peito e tinha dores agudas nas articulações. A visão ainda estava um pouco turva, mas consegui olhar pelas secções das janelas que não estavam tapadas por tábuas e ver edifícios familiares. A igreja, a escola, e até a casa de um amigo meu, fácil de identificar por se tratar de um prédio muito alto no cimo de uma elevação do terreno.

- Onde estou?
- Ah! Consegues falar? Menos mal! Quer dizer que não apanhaste uma dose muito forte.
- Onde estou? - repeti - Estou no Barreiro?
- Claro. Onde mais podias estar?
- Então... não morri?
- Bem, não! Mas já te disse, foi por pouco! Mais um minuto, talvez e...

O rapaz fez um esgar de caveira e arastou o dedo indicador pela garganta, fingindo que a cortava. Continuava confuso, mas demorei um momento a avaliar o meu anfitrião. Como já disse, por ser a primeira coisa em que reparei, tinha olhos azuis. Mas não eram nada comuns. Podia-se realmente dizer que "saltavam á vista", de tão grandes e redondos que eram. Pareciam mais duas poças azuis-safira hipnotizantes. Para alguém com olhos assim, o cabelo louro não era surpresa. O do rapaz era, ao mesmo tempo, dourado e sujo, e levemente despenteado, com riscos que lhe caíam para a cara e contribuíam para uma expressão de demente. No geral era magro, quase esqueléctico, e isso via-se na cara e por as roupas que usava lhe estarem exageradamente largas. Vestia uma T-Shirt branca com letras a azul-escuro que diziam: "Vote For Pedro" e que lhe ficava quase pelos joelhos. As "jeans" descaíam um pouco para a esquerda e não pareciam ter nada a que se agarrarem no corpinho escanzelado. Por fim, uns ténis rotos e sujos para além de se poder adivinhar a sua cor original completavam o quadro.

- Uh! O leite já deve estar a ferver! Espera aí!

Não disse nada. Fiquei ali á espera até que ele me apareceu com uma chávena fumegante de líquido branco pastoso. Poisou-a na mesa e sentou-se à minha frente, com os braços cruzados e observando-me. Achei que estava á espera que bebesse o leite, por isso levei o púcaro á boca e lancei-lhe uma expressão de agrado, apesar de estar a queimar os lábios. Durante o que me pareceu ser muito tempo, cada um parecia estar á espera que o outro dissesse algo.

- Olha, eu sei que deves estar confuso. Desorientado, mesmo. Mas não corres perigo nenhum. Estás mais a salvo aqui dentro do que lá fora, com todos os carros e assassinos e coisas dessas. Se tiveres alguma pergunta, diz á vontade.

- Não me lembro muito bem do que aconteceu antes de entrar naquela sala... com o...
- O Bob.
- Isso... o Bob... Como é que eu vim aqui parar?
- Bem, se não te importas, preferia esperar que ele chegasse antes de te começar a contar coisas importantes. E isso faz mais ou menos parte da história. Mas eu prometi-lhe que esperávamos por ele. Sabes, ele gosta muito de ser o centro das atenções, contar as melhores partes. Além disso, tem orgulho sabes, o plano foi quase todo ideia dele. Eu só entrei com os pormenores técnicos. Portanto, por enquanto, não posso responder a perguntas dessas. Desculpa. podes perguntar outra coisa e eu digo se posso responde ou não.

Reflecti um pouco.

- Quem é o Bob? O que é o Bob? Podes dizer-me isso?
- Bem... ele também é parte integrante da história. Por isso... não. Desculpa.

Já estava ficar farto da atitude do rapaz. Fartava-se de me dizer para lhe perguntar coisas, mas não podia responder a uma única questão que lhe fazia.

segunda-feira, maio 08, 2006

Crossed Windows


O rapaz de olhos azuis murmurava enquanto procurava a chave. Eu continuava a sentir-me ausente e leve como uma pena. Todo o tipo de pensamentos descoordenados e sem nexo me vinham à cabeça e eu ria-me de todos eles, do rídiculo que eram. Cheguei a imaginar que alguém, um ser místico, sei lá, me havia drenado todas as "partes más" do meu ser, os medos, preocupações ou ansiedades, e as substituiu por, nada mais, nada menos que gelado de framboesa, que me escorria pelas veias, fresco e viscoso e me enchia de alegria.
Ouviu-se um clique quando a fechadura finalmente cedeu e o rapaz abriu a porta. Estava preparado para uma sala luminosa, cheia de brilho, digna do reino dos céus... não para o que vi. Fiquei um pouco confuso quando observei o outro lado da porta para encontrar um apartamento imundo, uma divisão cheia de ferrugem e bolor, obviamente descurada e contrastando fortemente com o imaculado corredor em que me encontrava. Mesmo á minha frente, havia uma mesa de desenhador, daquelas que os arquitectos usam, cheia de papéis desorganizados e com um prato de comida vazio em cima. Ao lado, no chão, encontrava-se um copo apenas com umas gotas do que parecia sumo e laranja. Mais à frente, havia uma cozinha, cuja única delimitação em relação ao resto era o próprio balcão, também cheio de tralha. Não encontrei muito mais. A sala era pequena. Um sofá individual vermelho estava encostado a um cadeeiro de pé, com pilhas de livros que o rodeavam, formando uma pequena muralha.
Descobriam-se ainda, aqui e ali, objectos sem ligação entre eles, como um globo terrestre de madeira, com alguns dos continentes já apagados; um giradiscos com aparelhagem, e dezenas de discos cuidadosamente arrumados, um inédito comparado com o que tinha visto até aí; um computador com uma aura amarelada, de tão antigo e mais uma mesa, de jantar, com cadeiras em redor, todas diferentes umas das outras. A luz entrava por janelas parcialmente tapadas com tábuas a formarem cruzes, ocultando grande parte da paisagem lá fora.
Perdia eu tempo nestas observações, já o rapaz se encontrava a pendurar as chaves num cabide próprio, seguindo depois para o lavatório a fim de lavar as mãos, sujas de sangue do felino sacrificado. Não me ligou nenhuma enquanto não completou uma espécie de ritual, em que esfregava vigorosamente cada centímetro de pele com uma escova minúscula. Depois enxaguava, ensaboava, enxaguava novamente, mais sabão, e uma última passagem por água. No fim, ficou a admirar as mãos limpas por um minuto antes de olhar para mim.
- Entra. Podes sentar-te. - indicou-me uma das cadeiras.

Não fiz cerimónias. Coloquei um pé em cima das tábuas rangentes, mantendo o outro na brancura fria do corredor. Uma onda percorreu o meu corpo, desde a ponta dos pés até aos cabelos. Senti um arrepio desagradável na espinha. Comecei a suar. O rapaz não estava a ver-me, limpava a mesa de jantar com um pano amarelo. Tentei arrastar o outro pé para esta sala, mas este não me obedecia. Fiz tanta força que me vieram lágrimas aos olhos. Já tinha a cara encharcada, quando o rapaz finalmente largou tudo o que estava a fazer para me ajudar. Tentou apanhar-me, mas a minha queda foi mais rápida. No segundo seguinte, estava no chão, a debater-me com o meu próprio corpo, o outro pé ainda se recusava a abandonar o corredor.

O rapaz agarrou-me a cara, abriu-me os olhos com os dedos e colocou-me a mão esquerda na garganta.

- Raios! Esqueço-me sempre! Vá, caraças! Vomita!

Não me chegou a repetir a ordem. Senti a boca quente quando o estômago rejeitou o conteúdo e o expeliu. Sujei ainda mais o chão verde-podre do apartamento. Senti imediatamente um alívio. O rapaz esperou por mais réplicas antes de me ajudar a levantar e me sentar numa cadeira, eu ainda com espasmos. Não cheguei a perder a consciência, mas não conseguia falar, ouvir ou sentir.

sábado, maio 06, 2006

História de uma viagem ao Norte VII

"Bem, nessa noite não fizemos muito mais. Depois do jantar ainda demos umas voltas por Guimarães e vimos, entre outras coisas, raparigas a dançar Madonna (aquela irritante Hung Up) em cima de um palco no meio de uma praça. Já na pensão, juntámo-nos no quarto das raparigas para ver televisão e jogar um Verdade ou Consequência muito rasca mesmo. Já estávamos quase a dormir ao fim de um bocado. Voltei para o quarto e adormeci enquanto o Antunes via Wrestling na televisão.
Não se pode dizer que tenha dormido confortavelmente. De manhãzinha, despachei-me enquanto esperava a Cristiana pois tinha ficado combinado que seríamos nós a ir comprar o pãozinho quente. Foi o que fizemos. Voltámos à pensão a tempo de os apanhar a subir para o terraço, onde era servido o pequeno-almoço. Tratámos de nos alimentar enquanto observávamos a paisagem, sempre com aquela árvore solitária a observar-nos. Conversámos sobre o que íamos ver hoje. Se me lembro correctamente (e é um pouco embaraçoso se não me lembrar), fomos visitar primeiro o castelo de Guimarães e só depois fomos à Penha ou lá como se chama. Um parque natural, muito bonito. Então, deixámos as chaves na recepção e lá fomos. O castelo era ali perto, portanto não tivemos de andar muito. Pagámos a entrada e desatámos a explorar todas as divisões (aquelas a que tínhamos acesso, claro). Deveras interessante. Vimos um ou dois quartos, a sala de jantar (acho que se lhe pode chamar isso), as tapeçarias maravilhosamente bordadas com guerras e heróis, os quadros de personalidades da altura, etc. Uma das coisas que gostei mais foram as janelas com bancos para uma pessoa se sentar e observar a paisagem, que, devido a uma certa distorção que os vidros ofereciam, não sei bem porquê, mas parecia mais… antiga. Como se estivéssemos a ver mesmo o que os antigos habitantes do castelo viam.
Bem, depois de termos explorado todo o interior, incluindo uma capela genial onde até se ouviam cânticos gregorianos (uma gravação, obviamente) e as duas maiores tapeçarias que eu já tinha visto decoravam duas das paredes, saímos para ver o exterior do monumento. Pelo caminho ainda encontrámos um homem que nos sugeriu visitar uma casinha que ali estava á nossa frente. Revelou-se, afinal, uma espécie de santuário, com pessoas enterradas debaixo do chão de pedra. Giro.
Fomos ver as muralhas do castelo e foi por essa altura que os meus companheiros de viagem aprenderam algo sobre mim. Sempre tive um certo receio de alturas ou locais altos, portanto deve ter parecido muito estranho a todos eles quando me viram a subir as escadas encostadíssimo à parede, dando passos cuidadosos (verdade seja dita, também não custava nada porem um corrimão naquelas escadas, sinto-me descriminado). Não é preciso salientar que fui alvo de risos (não de maldade, mas simpáticos) e motivo de conversa galhofeira. A coisa não melhorou quando tivemos de passar por uma ponte de madeira e a Sara, na sua eterna simpatia, começou a dar saltos em cima dela e a abaná-la. Ah ah.
Mas, nem este bloqueio psicológico me impediu de subir á torre mais alta, através de umas escadinhas que pareciam ter sido construídas para bonecas. No entanto, valeu a pena. A vista era maravilhosa e foi um dos muitos momentos da viagem em que tive mais pena de não ter trazido a porcaria de uma máquina fotográfica.
Vimos tudo lá por cima, incluindo os escritos de certos enamorados no telhado, o que parece ser uma tradição em todos os sítios históricos. Chegou então a hora de descermos e ainda brincámos um pouco nos jardins, onde exibi o meu mundialmente famoso salto de alegria (que poucos conseguem fazer correctamente, é preciso que se note) e tirámos fotos artísticas e outras nem tanto, aliás, bastante parvas, mas no bom sentido.
Agora, há uma coisa que não me consigo lembrar (quem me manda a mim fazer intervalos tão grandes entre posts?). Eu acho que choveu, mas não tenho a certeza. Contudo, isso também não acrescenta muito á história e, se me tiver esquecido de algo até agora, a Sara pode sempre lembrar-me nos comments. Posso ainda salientar que, durante os nossos passeios, a cantoria era uma constante. Em grande parte por causa da Vitória, com um repertório que havia sido alimentado durante anos por música brasileira (com destaque para as canções dos filmes da Disney, quando ainda eram dobrados em brasileiro), rock, pop e algum gospel. Eu tentava acompanhá-la sempre que sabia a letra, ou introduzindo nova música do meu repertório (que se compõe principalmente por musicais e rock), mas rapidamente me diziam para me calar.
Enquanto isto, a Tânia salientava a importância do kuduro ou kizomba (não sei reconhecer estilos) com duas modinhas (sempre acompanhadas pela respectiva dança). “Tem que dançar o salé, tem que sentir o salé” era a primeira e era substitúida por vezes pela “Casamento… casamento…”. Estas frases eram as únicas que ela dizia de toda a música, mas era hilariante vê-la cantar isso enquanto saltitava de um lado para o outro com as mãos no ar.
Bem, o castelo está visto, vamos à Penha."