sábado, dezembro 30, 2006


Já passou um ano desde que criei este blog. Por mais triste que seja, se não fosse por isso, se calhar nem estava a escrever isto.

Quando comecei, pensei fazer um diário digital dos meus pensamentos, do meu dia-a-dia, da minha pessoa. Rapidamente me dei conta de como sou aborrecido e de como tudo o que escrevia parecia altamente enfadonho e pedante. Quão egocêntrico é preciso ser para ter uma página na internet e usá-la só para se mostrar às outras pessoas? Por isso, durante uns tempos, nada aconteceu...

Depois, algo se alterou. Um belo dia, em vez de dissertar baboseiras no meu fotolog, comecei uma história, escrevinhei umas quantas frases e, quando me dei conta, tinha um texto. Fiquei muito surpreendido e coloquei-o no fotolog. Uns dias depois, vi os comentários que lhe haviam feito e como tinham gostado. Depois, pediam-me uma continuação. "Muito bem", pensei. "Acho que posso fazer isso".

Novo texto, novas críticas favoráveis. Talvez tivesse tropeçado em algo interessante, parecia. Mas depressa me apercebi que talvez o fotolog não fosse o local mais indicado para colocar estes textos. Virei-me então para o blog, tão desaproveitado, tão convidativo, e comecei a postá-los, às prestações nesta página. O meu blog havia assim ganho novo fôlego e eu divertia-me a escrever os pedaços do que eu pensava ser uma história maior a flutuar na minha cabeça.

Pois bem, o tempo foi passando e eu gostava cada vez mais do que escrevia. Mas, talvez uma causa para isso, também demorava cada vez mais tempo entre posts, ao ponto de postar uma vez por mês. O último intervalo demorou bastante mais, como puderam ver aqueles que têm a bondade de me visitar regularmente e a quem eu agradeço imenso, porque me dão a certeza de não estar a escrever para o boneco, ou só para mim. A razão deste atraso, além da falta de tempo que a recente entrada na universidade me trouxe, vem de considerações que fiz acerca da história em si.

Pensava para mim mesmo que, se queria realmente colocar cá fora toda a narrativa que tinha dentro de mim, talvez devesse organizá-la, planificá-la como um mapa bem estudado, em vez de escrever fragmentos sem nexo de histórias. Não estou a deitar fora nada do que escrevi, aliás, sinceramente, adoro estes pequenos devaneios, mas é precisamente isso que são, devaneios. E eles merecem mais, merecem tornar-se parte de algo maior, esse algo que nunca me vai deixar descansar enquanto não conseguir exprimir verdadeiramente. Assim, considerem este blog, desde que comecei a colocar textos fictícios, como um caderno de rascunhos, ensaios para algo maior, algo que espero algum dia ter o "engenho e a arte" para contar. São tantos os detalhes e personagens que todos os dias se colam à história, que por vezes tenho a sensação de ter um verdadeiro épico em mãos.

Quanto ao destino deste blog, o assunto que me fez escrever isto em primeiro lugar, só posso dizer que, no mínimo, manter-se-á como está agora. Não tenciono apagá-lo ou aos meus posts. No máximo, continuarei a precisar dele para os meus "ensaios" e posso vir a postar mais fragmentos. Até lá, espero que continuem desse lado e critiquem. Sem críticas, estarei a escrever uma história só para mim. Obrigada a todos. Bom Ano Novo!

domingo, outubro 29, 2006

a box for the invisible mouth, no light can come in, no shine can come out


Daniel deitou-se no chão como, de resto, fazia sempre que a vida lhe atirava cuspo à cara. Sara olhava-o do outra lado da sala, com desdém espelhado nos olhos. Sempre que ele fazia isto, ela ficava um pouco mais longe de obter a sua liberdade, agora reduzida aos poucos minutos que Daniel se arriscava a projectá-la no mundo. Costumava deixá-la vaguear por entre as almas, ocupadas a ir deste sítio para aquele, na sua imensa pressa de deixar o mundo com as mãos sacudidas da poeira. Um sentimento de trabalho bem feito. Dúzias de gerações que se mataram com esforço de fazer o mundo girar sem nunca pararem para perceber que outros mecanismos actuam no seu eixo. Parar é morrer, disseram, parar é morrer. Viver é morrer, e trabalhar não é viver. Era a estes e outros pensamentos que Sara se dedicava no seu dia-a-dia a observar as pessoas. Não era que simpatizasse muito com elas, simplesmente não tinha nada melhor para fazer. Enquanto Daniel estava na escola, não precisava dela. Ocupava-se com as futilidades dos papéis, das equações, dos colegas... Não tinha tempo para amar. Só á tarde, quando regressava, se dedicava a ela. Nunca lhe passou pela cabeça uma única vez que ela não precisasse dele, que o odiava. Ele não a queria para companhia, sequer, apenas uma imagem para onde pudesse olhar sem medo, sem vergonha. Era a porra de uma fotografia com alma. Desprezava o seu criador, o seu egoísmo, metia-lhe nojo um ser assim. E depois, mesmo quando era ingénua, mesmo quando sentia saudades de Daniel, ele refugiava-se dentro do ego e saía de lá com mais correntes e grilhões, onde ia ele buscar aquelas ideias, não sabia. Mas sempre que Daniel tinha mais uma crise existencial, Sara saía a perder. Agora, já nem podia sair à rua. Estava sempre em casa. Sempre fechada no quarto. A pouco e pouco, as paredes ficavam mais juntas, engoliam-na. Tudo por culpa daquele visco que se arrastava pelo chão, em pensamentos deprimentes. Agora fechava os olhos, abria os braços, ela já sabia o procedimento. Agora murmurava para si mesmo, em Inglês. Sempre em Inglês. Era assim que falava consigo mesmo, patético, não é? A língua estranha dava-lhe refúgio, deixava-o ser outro alguém, alguém melhor.

Sara olhou pela janela e esperou que acabasse.

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Daniel conseguia sentir a respiração suspirante de Sara. Inalava o seu protesto a cada respiração lenta. Fechava os olhos e o mundo desaparecia outra vez. Abria-os e lá estava tudo no mesmo lugar de sempre. Fechava-os outra vez e voltava à escuridão. Aqui, podia abrir os braços e receber o mundo que o repelia durante as horas acordado. Aqui, podia ser ele mesmo, sujeito ao seu próprio julgamento. Aqui, podia perceber porque é que o mundo demorava tanto a revelar-lhe o óbvio, aquilo que Daniel já tinha percebido há tanto tempo. Era uma questão de tempo, tinha de ser. Era tudo tão perfeito que não podia ser apenas um delírio. As coisas aconteceriam como tinham de acontecer, como Daniel as via na sua mente. Procurou respostas. "O teu esforço em permaneceres como és é o que te limita" pensou. Mas era tão difícil sair de si próprio. Só a ideia o aterrorizava. "E se não conseguir voltar? E se o meu corpo não me aceitar de volta?" Não. Tinha de haver outro modo, outra saída. Cultivava paciência, mas já estava farto de esperar. Porque demorava o universo tanto tempo a dar-lhe o que queria? É difícil naquelas noites de desespero, nos olhares indiscretos a outros. Está lá tudo, tão perto, mas Daniel não consegue alcançar. Queria escondê-los a todos, prendê-los, nunca mais lhes pôr a vista em cima. Não tinham o direito de se pavonearem assim, à sua frente, gozando, rindo... Todos os que conhecia, todos os que não conhecia. O mundo era uma gigantesca festa e todos estavam convidados menos ele...

Mas tinha Sara, ou pelo menos o seu espelho, e a ela não a ia deixar fugir...

Abriu os olhos e Sara percebeu que era a última vez que via a luz do Sol.

terça-feira, setembro 19, 2006

Can't you see them?





"Terça-feira, 14 de Julho de 2006


O meu nome é Rita. Não tenho outro, nem continuação. Só Rita. Por vezes posso parecer que tenho mais nomes, mas não passa tudo de imaginação, brincadeira, desempenhar papéis que não são mais que disfarces, máscaras.

Durante 3 anos e meio, estas folhas de papel foram casa de hóspedes desses personagens e de mim mesma, que no fundo é dizer uma e a mesma coisa, que sou eu. Todas as loucuras que me passaram pela cabeça foram assentadas com pena e tinta neste caderno vermelho, de cor desbotada. Não posso dizer o mesmo das loucuras de outros, como a Violeta ou o Microkid, principalmente ele, que nunca concordou com esta ideia. A Violeta achou uma boa medida, mas depressa se esqueceu de a pôr em prática, como se esquece de tudo o resto...

Há outros, muitos outros. Nem eu os conheço a todos. Ás vezes penso que são infinitos, que há um exército deles á espera de me substituir, ansiosos por andar ao Sol e á chuva. Mas não podem, não sem minha autorização, tenho de os manter na ordem ou seria o caos. Saltariam por todos os lados, entupiriam-me as artérias, roubar-me-iam as sinapses e espalhariam a desordem. Por isso têm de ficar quietos. Até eu os chamar.

E, no entanto, quem me garante que não sou apenas mais um? O que me leva a pensar que não passo de mais uma peça do puzzle, com manias de grandeza? Talvez a Rita exista tanto como a Violeta, ou o Homem-Fantasma, ou a Princesa Pi, etc, etc...

Mas não quero nem posso falar mais nisto. É só a minha imaginação a tentar que lhe prestem atenção. É tão egoísta! Odeio-a! Faz-me esquecer toda a gente, faz-me não ligar, não me interessar por nada! Afasta-me dos outros e por isso é que comecei a escrever esta página em primeiro lugar. Tenho de lutar contra ela, resistir-lhe. Se a conseguir enfrentar no território de papel, onde tem a vantagem, posso dizer que consegui alguma coisa. Ou não, não sei...

Pela última vez, a minha imaginação fez-me magoar alguém. Alguém de quem eu gostava muito. Era um bom rapaz, e tinha um nome engraçado, mas quando acabei com ele, não sabia como se chamava nem quem era.

Acho que o devorei.

Devorei-o por dentro, roubei-lhe tudo, pilhei-o até á última moeda de ouro. Quando acabei, era uma casca vazia. Mas isso não é o pior. O pior é que eu lembrei-me. Lembrei-me de ter feito uma coisa assim antes, lembrei-me de ter gostado.

Não me lembro a quem o fiz, não me lembro porquê...porquê..?

Desde que me chamaram louca, que os homens de bata me disseram que o meu não-sei-o-quê na parte de trás da cabeça era hiper-desenvolvido, blá blá blá. Desde aí que eu percebi que não ia ter direito a uma vida normal. Tinha só uns 5 anos, o que é que eu podia saber sobre uma vida normal? Bem, sabia uma coisa. Qualquer observação dessa vida teria de ser feita do lado de fora. Porque outra razão me estariam a dizer que era hiper? As coisas normais não são hiper, são normais. Porque é que me levaram ao homem de bata? Porque é que os meus pais pareciam tão preocupados? Não era normal. Logo, eu não era normal. Pura lógica.

Depois vieram os comprimidos, mas não tão comprimidos como a vida que eu estou a tentar espremer na tinta que resta nesta caneta preta. Eram amarelos e difíceis de engolir. Faziam-me engasgar, mas os meus pais não queriam saber. Tinham deixado de confiar em mim desde que souberam que eu era "diferente". A maior parte do tempo não me ligavam nenhuma, mas ás vezes precisavam que eu fizesse alguma coisa. Nessas alturas, fingiam carinho.

Depois batiam-me quando eu os vomitava. Ou quando eu não conseguia dormir. Ou quando não tinha fome mas ainda tiha comida no prato. Ou quando não me apetecia ir brincar com os meus amigos, ou quando tinha uma nota muito baixa na escola, ou quando tinha uma nota demasiado alta! Puniam-me por qualquer comportamento fora do padrão, fora do normal, portanto. Se eles soubessem... Se soubessem o que causaram, as... criaturas que libertaram. Uma por cada injustiça, uma por cada nódoa negra. Todas as noites, quando fingia dormir, abria-se uma porta e alguém vinha consolar-me. A princípio era só a Violeta. Coitada, era tão tímida e frágil, não fazia ideia de como me abraçar, sequer. Tive de lhe ensinar tudo. A falar baixinho, a dar beijinhos, a dormir quietinha. Ela ganhou a minha confiança, e atraiu outros. Todas as noites, o meu quarto abarrotava enquanto os meus pais ressonavam num sono sem sonhos. Jogava com eles, brincava, dançava, tudo em silêncio, sem um som. Claro que nem todos gostavam de mim. Mas mesmo os que me desprezavam mantinham-se enconstados á parede, observando.

Aos 12 anos, tive a minha primeira crise. Estava no recreio da minha escola. Sozinha, como sempre. Estava a chorar. O Monstro tinha dito alguma coisa que me fez chorar. Lembro-me de estar zangada com ele. Gritei com ele, mas não me ouviu. Bati-lhe, mas chorei ainda mais, agora doía-me a perna. Uma professora aproximou-se de mim. Não a ouvi chegar-se. Mas o Monstro ouviu. Tentei salvá-la, tentei dizer-lhe pra não se chegar. Mas ela agarrou-me o ombro e ele atacou. Mordeu-lhe a mão com tanta força, que foram precisos dois funcionários para a soltar. Só que já não era uma mão. Era um apêndice inchado e vermelho que pulsava. Senti-me a desmaiar ali mesmo. Quando voltei do hospital, tinha passado uma semana. Levei tanta porrada que voltei lá passados dois dias.

Entretanto o Apolinário anda por aí, enquanto eu não faço mais que escrever as minhas memórias. Talvez ajude. Acho que tenho sobretudo medo de morrer. Não, não é bem isso. Tenho antes medo de ser esquecida. Tenho medo de ser anónima. De não me distinguirem numa multidão. Mas o Apolinário anda por aí. Deve ter medo também.

Desculpa.

continua..."

terça-feira, julho 25, 2006

Intermission for the imaginary lovers

Qual é o contrário do amor?

É o ódio? Não pode ser. Se o amor é a união mais forte entre duas pessoas, então o seu contrário deve ser aquilo que mais as afasta. O ódio não afasta as pessoas. Pelo contrário, atrai-as. Cria uma ligação entre elas. Quando dizemos que odiamos alguém, estamos inevitavelmente ligados a essa pessoa. Portanto, não é o ódio, nem nenhuma emoção.

- O medo.

O quê?

- O medo afasta as pessoas. Não as aproxima. O medo pode ser o contrário do amor.

Como é que sabes? Tu nunca amaste. Nunca amaste ninguém.

- Nem tu! Só pensas que amaste. Chiça! És tão indeciso que nem sabes o que sentes!

Então... o medo isola as pessoas e o amor junta-as? É isso?

- Talvez... Mas o amor nem sempre é união. Muitas vezes, também afasta.

Nesse caso, o amor é o seu próprio contrário. Não pode ser. O universo tem sempre um oposto distinto para tudo. Cima, baixo, positivo, negativo. Se uma coisa é oposta dela mesma, está deslocada. Não pertence aqui.

- No entanto, cá estamos nós a discuti-la. O que é que estás a fazer em casa a estas horas?

Não me apetece sair. Prefiro ficar sozinho.

- Então, o que estou eu aqui a fazer?

Ninguém te convidou. Podes-te ir embora.

- Quem me dera. Mas não me deixas. Estou presa a ti.

...Eu sei... Quem me dera que não estivesses.

- Também eu. És aborrecido e estúpido. Só precisas de mim para não te ires completamente abaixo. És patético. Eu nem sequer sou real.

Vai-te embora.

- Tu dizes isso, mas não é isso que queres.

É sim. Vai-te embora, por favor.

- Já disse que não consigo. Estás a mandar-me ficar.

Vai-te embora! Deixa-me sozinho!

- Está bem... Mas sabes que eu vou voltar... Porque se eu não voltar...ja sabes...puff...

...Eu sei...não te afastes muito...

- (suspiro) Não te preocupes. Não tenho nenhum sítio para ir...Ouve... Tu não és patético. Mas... também não és nada de especial... Desculpa. Adeus.

domingo, julho 16, 2006

Lover Boy & Heart-Break Girl

o meu primeiro filme em stop-motion. coisa muito simples mas gostei de o fazer.

sexta-feira, julho 14, 2006

Everybody loves you when you're pink


E todas as noites, João Apolinário se sentava em frente ao computador. Os dias eram ocupados com assuntos maçadores e cansativos, como a escola, no caso dos dias úteis, ou o estudo, aos fins-de-semana. Mas á noite, por mais trabalhos que permanecessem inacabados ou qualquer teste importante no dia seguinte, era altura de descanso. Era nestes momentos que Apolinário se dedicava a conversar com amigos em chats (a conversa durante o dia nem sempre era suficiente) e a explorar a rede em busca daqueles pedaços de multimédia que o fizessem rir alto, fossem vídeos, músicas ou imagens. Mas era também á noite que Apolinário se transfigurava num outro ser. Que ser era esse, dependia exclusivamente da sua disposição ou da posição em que se encontrava. Mas a sua própria personalidade se adaptava á personagem que decidia encarnar. E com uma estante recheada de CD's com os mais variados jogos, a escolha era muita. Apesar de ser conhecedor de muitos géneros, a sua modalidade favorita era pegar numa arma e disparar nas suas preocupações e ansiedades. FPS, First Person Shooter, um jogo onde podíamos matar, esfolar e perder qualquer vestígio de humanidade, mas ainda assim sermos nós próprios, escondidos atrás da arma, com a cara oculta. Era o escape perfeito para aqueles dias de raiva e de frustração. Dias como hoje. Hoje Apolinário ia ignorar os amigos que o chamavam para a conversa, ia esquecer os alívios cómicos (não tinha grande vontade de rir). Por uma noite, Apolinário ia simplesmente esvaziar as mágoas inflingindo dor em inimigos pixelizados, anónimos o suficiente para se poderem parecer com os seus inimigos no mundo real.

Que FPS escolher? Não interessava realmente. A filosofia de todos é uma só. Só vives se matares. Tudo o resto é supérfluo. Não importa o objectivo, não importa a recompensa, nem sequer importa a TUA filosofia. Tudo o que sabes é que tens uma arma e todos os que encontras te querem impedir de conseguir o que queres (seja isso o que fôr). Por isso, Apolinário escolhe uma caixa com o nome Unreal Tournament. Abre-a e o computador ingere o disco, com um ruído metálico. É o FPS perfeito. Nada de histórias romanescas, ou demandas épicas. Apenas um mapa, tu e os teus némesis. O único objectivo é matá-los e sobreviver-lhes. E é divertido como o caraças!

Bang! Bang! Há duas explosões por cada tiro dado pela tua arma. Aquela que vês no peito do adversário e aquela que ouves na tua cabeça, que rebenta no âmago das tuas desilusões. Bang! Apolinário dispara. Tudo é deixado para trás e o que sobra não é um rapaz, é um predador. Os seus olhos vêem apenas sinais de movimento. Os seus ouvidos estão concentrados nas emboscadas que lhe são feitas. Os seus movimentos são precisos e planeados. A máquina de matar perfeita... pelo menos em teoria. Claro que Apolinário nunca teria coragem de pegar numa arma verdadeira e disparar sobre os seus semelhantes. Isso seria... errado...

A ilusão de carnificina é suficiente. Até á meia-noite, Apolinário cura os seus males à força da pistola.

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O dia seguinte não ajuda a manter o alívio que horas em frente ao monitor proporcionaram. Os mesmos fantasmas que o assombravam ontem, permanecem hoje em seu redor. Pudera! Com a mesma rotina todas as semanas, as preocupações sabem sempre onde o encontrar a determinada hora. Neste momento pairavam sobre o autocarro Nº 3, no seu caminho para o terminal. Lá dentro, Apolinário amaldiçoava mais um ignorante entredentes e só interrompeu esta actividade quando o autocarro parou e pela porta da frente entrou uma rapariga.

Tendo em conta a situação, Apolinário não tinha grande paciência para apreciar medidas femininas, mas não foi por isso que ela lhe chamou a atenção. Foram as cores... O cabelo cor-de-rosa (da cor das pastilhas elásticas) caía-lhe sobre os ombros e testa. Os óculos escuros tapavam-lhe os olhos, mas logo abaixo podiam-se ver os lábios pintados de verde-brilhante (até faziam reflexo). Para contrastar ainda mais, a camisola era preta e tinha uma enorme cara branca e esqueléctica estampada á frente, que parecia lançar um olhar maléfico directamente para Apolinário. Tinha pelo menos meia-dúzia de pulseiras em cada pulso, de todas as cores e feitios. O ombro direito estava tapado por um pedaço de tecido atado. Se descêssemos mais, veríamos ainda uma saia comprida, com bolinhas brancas e folhos, mas não comprida o suficiente para tapas os tènis azuis rotos e gastos. Trazia ao ombro uma mala a tiracolo enorme e, a julgar pela forma como a carregava com dificuldade, completamente cheia.

Ainda mal Apolinário tinha conseguido assimilar o choque, a rapariga aproxima-se do seu lugar e senta-se mesmo ao seu lado. Isto era outra coisa que irritava Apolinário. Bastava uma espreitadela em redor para ver que o autocarro estava quase vazio. Havia bastantes lugares onde ela se podia sentar sozinha. Porque raio é que o tinha "prendido" ali, virado para a janela, forçado a pedir licença quando quisesse sair? Além disso, aquele tipo de pessoas deixavam-no nervoso. Ainda mais quando ela afastou o cabelo com a mão, colocando-o cara a cara com uma orelha cheia de piercings (essas coisas eram o que mais o impressionavam pela negativa), abriu a mala e começou a beber de uma garrafa de sumo azul que tirou de lá.

Apolinário tentava não olhar, mas quando a rapariga começou a alargar o decote com a mão para assoprar no peito, não resistiu a lançar um olhar espantado. Ela apanhou-o, divertida e disse:

- Está uma grande brasa, não achas? Estou farta de suar. As cidades são muito quentes. Seria de esperar que os autocarros andassem com a porta aberta pelo menos!

Esta última observação foi menos para Apolinário e mais gritada para a frente do autocarro, onde o condutor a ignorou, assobiando.

- Pronto, mas nem toda a gente tem senso-comum. - Olha para Apolinário, que sorri e acena com a cabeça afirmativamente - Epá! Desculpa! Sou mesmo mal-educada, ás vezes! Chamo-me Rita. Rita Catita. Queres um bocado do meu sumo?

- Hmm, não. Obrgado. Chamo-me João.
- João?! Coitadinho! És mais um num milhão! (risos) Os pais de hoje em dia não são nada originais, pois não? És João quê?
- Apolinário.
- Ah! Isso sim! É um nome giro. Apolinário. Apolinário.

Enquanto Rita repetia o seu nome para si mesma, divertindo-se sozinha, Apolinário só pensava porque é que estas coisas lhe aconteciam a ele. Nunca falhava. Todos os malucos do Barreiro acabavam por ir sempre ter com ele e meter conversa. Seria da água de colónia? De qualquer modo, estava na hora de abandonar a companhia da menina cor-de-rosa porque a próxima paragem era a sua.

- Hem... Com licença. Vou sair.
- Hã? Onde estamos?
- Perto da Rua da Estação.
- A sério?! Então também tenho de sair! Podes ajudar-me aqui a fechar a mala?

Apolinário não percebeu bem à primeira. Depois, ao vê-la tentar enfiar novamente a garrafa num dos compartimentos da mochila, cheia de papeís, comida e objectos estranhos, empurrou também e, com esforço, conseguiu fechá-la.

- Muito agradecida. - depois, antes de sair, para o condutor - E obrigada por uma viagem fantástica! Espero que a próxima pessoa que se sentar aqui não se incomode com o suor!

O condutor lançou um olhar furioso e quase entalou Apolinário na pressa de fechar a porta traseira.

- Bem, mas que temperamento! - comentou Rita - Estás bem?
- Sim... estou.
- Vais subir? Por aqui?
- Hmm... sim. Tu também?
- Agora vou! Anda daí!

Mas isto nunca mais acabava? Quando é que ela o ia deixar em paz? Não lhe agradava nada que ela visse onde mora. Mas que remédio tinha ele agora? Tinha de ir para casa, de qualquer maneira. Subiu a colina na companhia da estranha rapariga. No topo, estava a sua casa, o edifício que podia ser visto de qualquer ponto do Barreiro, como dizia o Daniel. E ele, que morava no último andar, tinha vista previligiada de toda a cidade.

- Apolinário! Sabes uma coisa? Não és muito conversador.
- Hã... pois. O dia não me correu ás mil maravilhas.
- Ah, estou a ver! Um dia de cão, portanto? (risos) Deixa lá. Isso amanhã corre melhor.
- Isso foi o que pensei ontem.
- Ahá, mas aí é que está! Ontem ainda não me conhecias. Assim, amanhã já tens a história da "rapariga doida do autocarro" para contar aos teus amigos. (risos) Depois eles perguntam se eu era "bonita". E tu dizes: "Eh, mais ou menos". Claro que depois eles querem saber se eu era "boa". E aí já vais pensar duas vezes, porque apesar de Deus não me ter dado grandes atributos, não sou nada de deitar fora. E possivelmente vais-te sair com um comentário do género: "Era comestível" (risos)

Apolinário olhava para ela espantado.

- Hã? Apercebeste que acabaste de ter uma conversa sozinha?
- Eu sei. Acontece-me ás vezes.
- Bem, eu fico por aqui.
- Oh. É aqui que vives?
- ...Não. Vou ter com um amigo meu. Temos um trabalho de grupo para acabar.
- Ah! Ok! Não te chateio mais! Adeus!

A parte mais estranha deste já por si estranho encontro foi sem dúvida quando ela o abraçou na despedida. Ele retribuiu desajeitadamente, mas assim que se viu livre, apressou-se a entrar no prédio e nem olhou para trás. Que gente mais doida.

quinta-feira, junho 22, 2006

Coffee Break

Falaram durante cerca de meia-hora sobre assuntos sem qualquer interesse prolongado.
Basicamente, trocaram impressões sobre os países onde tinham estado, e para os quais gostavam de viajar. Luís chegou a mostrar-lhe um Netsuke feito á mão. Lídia observou o pequeno pedaço de madeira com atenção e maravilhou-se com a precisão artística com que fora esculpido. Ela, por outro lado, mostrou-lhe meio envergonhada, as lembranças que tinha trazido para os amigos e familiares. Uma caneca, peluches de duendes verdes com potes de ouro incluídos e carradas de porta-chaves com trevos.

- Não sou muito boa a escolher souvenirs - disse, em tom de desculpa. - Como nunca sei o que cada pessoa vai gostar ou odiar, limito-me a escolher as coisas mais comuns. Assim... tenho a certeza que toda a gente vai odiar! - gozou, e completou com uma careta.

Luís pareceu mais interessado na colecção de isqueiros. Lídia tinha, mesmo assim, trazido bastantes da Irlanda. Uma das bolsas do seu saco pequeno estava totalmente cheia de todo o tipo deles. Luís viu e experimentou cada um, divertindo-se á grande. Depois, voltou a arrumá-los e a conversa arrefeceu um pouco. Agora estavam um para cada lado, Luís ouvia música no leitor de MP3 de Lídia enquanto esta escrevia num bloco de papel. Passaram-se alguns minutos até um deles dizer algo. Foi Luís.

- Acho que se acabou a pilha. - disse, mostrando o MP3 - Tens mais?
- Não. Já vinha a ouvir com essas há dias. Deixa estar.
- Agora ficaste sem música para o resto da viagem. Desculpa lá.
- Não tens de pedir desculpa. - respondeu, distraída. - Guarda-o aí na minha mala.

Luís fez isso mesmo e depois sentou-se, aborrecido. Ficou a olhar pela janela um bocado. Lídia olhou para ele.

- É um bocado deprimente ficar a ver a paisagem passar, não é?
- O que queres dizer?
- Bem, todas essas pessoas e sítios que estão a ficar para trás a uma velocidade incrível. Não consigo deixar de pensar que é uma metáfora para a vida que nos passa ao lado. E isso deprime-me...um bocadinho.
- Uma metáfora? Como assim? Não é uma metáfora. É mesmo a vida a passar-te ao lado! Todo o tipo de coisas estão a acontecer e estás a passar por elas sem as ver ou sentir.
- Bem, sim... Mas é isso que eu quero dizer!
- Sim, eu percebi. Mas podes sempre pensar assim: para as pessoas que estão a ver este comboio passar, também há a sensação de estarem a perder qualquer coisa. De a vida lhes passar ao lado.
- E porque é que isso me devia fazer sentir melhor?
- Só te faz sentir melhor se achares que o que eles estão a perder é melhor do que o que tu estás a perder aqui sentada. Hã? Não acahs?
- É uma perspectiva parva.
- Bem, era uma ideia um bocado parva, para começar.
- Ok, pronto. Mas não tens dessas ideias parvas ás vezes? Não pensas em inutilidades assim?
- Não gosto de pensar. Principalmente em coisas tristes. Acaba sempre por me entristecer. Por isso, o melhor é não pensar...
- Boa teoria...
- O que é que estás a escrever afinal?
- Isto? Nada. É uma carta.
- Uma carta? Para quem?
- Para uma amiga minha na Irlanda.
- Já? Acabaste de vir de lá, certo?
- Sim! Mas já tenho saudades! É uma grande amiga!
- Estou a ver. E falas de mim na carta?
- Não me parece. - diz, sarcástica - Só falo de coisas "importantes".
- Ora essa! E então? Não sou uma coisa importante? Acabaste de ter um encontro amigável num comboio com um gajo que esteve no Japão! O que é mais importante que isso?
- Digamos que te considero mais um... acidente de percurso.
- Mas que má!

Lídia riu-se.

- Vá, até admito que estou aborrecida. Queres fazer alguma coisa? - disse, colocando de parte o bloco de papel.
- Claro! Tudo para quebrar este tédio! Não me dou muito bem em sítios onde não tenho nada para fazer. Fico... maluco.
- Ainda mais? Gostava de ver isso.
- Que engraçada.

Lidia levanta-se e olha pela janela.
- Estamos a chegar a uma estação. Não consigo ver o nome.
- E isso interessa? Desde que dê para sair um bocado deste comboio.
- Tens razão, vamos!

Estende-lhe a mão e puxa-o para cima. Depois, saem da cabine e percorrem as carruagens, onde alguns passageiros tiram as suas malas e vestem os casacos. Passam á frente de umas quantas pessoas e colocam-se em frente á porta. O comboio abranda lentamente e por fim pára. Abrem-se as portas e Lídia e Luís saem cá para fora, aliviados.

- Ahhh! Ar puro! Estava farto daquele sítio!
- A quem o dizes. Tenho as pernas dormentes.
- Precisas de andar, então. Vamos dar uma volta. Acho que há ali um café.
- Não tenho dinheiro, pá.
- Ora essa! Como se na minha presença, uma donzela fosse gastar dinheiro. Vá, anda daí!

Entraram no café, e Luís aproximou-se do balcão.

- O que é que queres beber? - perguntou a Lídia
- Um café sabia bem.
- Dois cafés, bom homem! Vamos sentar-nos lá fora?
- Pode ser.

Foi o que fizeram. O tempo estava limpo e quente, tal como deve estar numa tarde de início de Setembro. São os únicos naquelas mesas. Todas as outras pessoas tomam as suas bebidas ao balcão, apressadas. Mas um silêncio desconfortável instala-se entre Lídia e Luís assim que param para bebericar as suas chávenas. Lídia não acredita em silêncios desconfortáveis, por isso não faz nada para o quebrar. Luís, por outro lado, tem dificuldade em permanecer calado durante longos períodos de tempo. Antes de dizer o que quer que fosse, concentrou-se em colocar 6 ou 7 colheres de açucar no seu café, sob o olhar espantado de Lídia.

- Achas que é suficiente? - gozou, quando Luís acaba de pôr a sétima colher.
- Se queres saber, não sou grande apreciador de café. É demasiado amargo. Prefiro coisas mais doces.
- Eu também gosto de coisas doces, mas ás vezes sabe-me bem algo amargo, para despertar os sentidos. Mas se não gostas, porque é que bebes?
- Porque estou estafado e isto ajuda-me a espevitar. É a única coisa boa do café, para mim. Odeio estar... mole.
- Espevitar? hi hi hi. Não ouvia essa há um tempo. Mas vês? É esse o problema das pessoas.
- Qual?
- As pessoas não tratam o café como uma bebida a sério. É um instrumento. Só o bebem para se sentirem mais capazes. Não apreciam o gosto do café, nem o cheiro do café. Aliás, por isso é que é servido neste tamanho. Para as pessoas não terem de olhar para ele duas vezes.
- E claro que tu, vais contra essa corrente.
- Não sou a única, mas sim! Eu gosto de saborear o café. Bebo-o porque gosto do sabor.
- Também bebes águas gaseificadas?
- (risos) Não. Isso não. Mas é outra bebida marginalizada. Usada como ferramenta.
- Então é melhor termos cuidado antes que se revoltem. Odiaria ver isso. (risos)

Rindo-se também, Lídia dá mais um gole no café. Faz uma careta e poisa a chávena.

- Blargh! Claro que gosto de apreciar bom café, e não esta lama! Que horas são?
- Não tenho relógio. Porquê?

Um apito próximo do comboio deixa ambos em pânico.

- Por aquilo! Vamos!

Ao passarem pelo balcão, Luís atira meia dúzia de moedas ao empregado.

- Fique com o troco!

Correm o mais que podem até á porta e pulam para dentro, ofegantes. Olham um para o outro o riem-se todo o caminho até aos seus lugares.

- Bem, já tivémos uma aventura! - diz Luís, entusiasmado. - Não me digas que isso não é digno de ir para a tua carta?
- Ná! Vais ter de te esforçar mais.
- Pode ser. Quando é a próxima estação?
(riso de ambos)
- Por acaso, acho que esta era a última.
- Queres dizer...?
- Sim. Estamos quase a chegar. Agora não há mais paragens até ao Barreiro.
- Bem, já não era sem tempo. Está a anoitecer.
- Para onde é que vais, depois de chegares?
- Ainda não sei. Devo ficar em casa de um amigo. Ele vai ter uma surpresa. Não está á minha espera. E tu?
- (risos) Eu? Eu vou direitinha para casa, que tenho escola já amanhã. Aliás, hoje já devia lá estar. Estou-me a baldar. (careta)
- 12º Ano?
- Hum-hum... - confirma Lídia. - O mais difícil, não é o que dizem?
- Não sei...
- Claro. Aposto que tu não és propriamente o aluno exemplar, com as tuas viagens ao Japão e isso tudo.
- Pelo contrário. Sou o aluno perfeito. Porque nunca perco a vontade de aprender.
- Mas nunca puseste os pés numa escola.
- Bem... não.
- Foi o que pensei. Sabes, Luís, és um tipo mesmo estranho.
- Mas...?
- Mas é melhor do que viajar sozinha. (sorriso) Além disso, trazes comida e pagas-me cafés. Dadas as circunstâncias, podia ter-me calhado colega muito pior.
- Claro! Imagina se entrava por aí um drogado ou um violador?
- E o que me leva a pensar que não entrou?
- Engraçada, hã? És mesmo comediante. Se fosse má pessoa, não te empanturrava.
- Nunca ouviste falar da Hansel e Gretel? Mas já que falas em comida, não tens por aí mais surpresas nesse casacão? Talvez um antiácido para me tirar o gosto daquele café delicioso?
- Tenho... - prosurando nos bolsos - Tenho pastilhas! São de morango.
- Rapaz, adoro-te!
- Claro que sim... enquanto não se acabar as guloseimas.
(riem-se os dois)

O comboio segue rapidamente em direcção ao Barreiro, com dois passageiros divertidos no seu interior.

terça-feira, maio 30, 2006

Cherry


ATENÇÃO: este excerto passa-se antes de tudo o que já escrevi desta história, seja no meu blog ou fotolog. isto faz parte do começo. enjoy :)

Ninguém disse uma palavra durante a viagem de carro. Lídia limitava-se a olhar pela janela, para os lindos campos irlandeses, cheios de verde até onde a vista alcançava. Apesar de a encherem de receio sempre que se encontrava sozinha na sua vastidão, sempre era melhor que olhar para o seu lado e ver as lágrimas de Rute. Ela era daquelas pessoas que mostrava sempre o que sentia e neste momento não conseguia parar de soluçar. Lídia temia que, se olhasse para ela, não tardaria muito a fazer-lhe companhia no choro.

Quem parecia mais calmo era o primo de Rute, Cass, que ia a conduzir o carro, um Honda prateado de que tinha muito orgulho. Era a personagem mais enigmática no carro. O único que Lídia não tinha compreendido inteiramente ao longo da semana que passou na sua companhia. Em certas alturas, parecia completamente ausente, como se estivesse a pensar em coisas imensamente mais importantes. Mesmo assim, na noite em que apanhou aquela grande bebedeira, que até vomitou todo o caminho para casa, foi ele quem ficou com ela e lhe segurou a cabeça quando as entranhas pareciam querer sair e dar um passeio. E conversaram toda a noite. Sobre o quê, é que já é mais difícil recordar. Estava bastante "tocada" pela loucura dos bares irlandeses.

Ao lado de Cass, no lugar do morto (Lídia adorava esta expressão) ia Aileen, a madrasta de Rute. O pai tinha casado com a mãe de Rute em Portugal, mas tiveram problemas e divorciaram-se. Depois disso, conheceu Aileen e vieram morar para a Irlanda, quando Rute tinha 7 anos. Nessa altura, ela e Lídia eram melhores amigas e faziam tudo juntas. As maiores dores que Lídia já sentiu foram na alma, quando Rute lhe disse que tinha de partir. Eram duas raparigas bastante diferentes, mas deram-se bem desde que se viram pela primeira vez. Rute tem cabelo castanho e óculos. É pálida como um fantasma, e parece-se com um quando usa os vestidos longos pretos que tanto gosta. Já Lídia tem cabelo de corvo e uma postura mais descontraída. Neste momento veste-se com umas jeans e uma camisola ás riscas pretas e brancas. Tem uma cara de criança traquina, com um nariz empinado e um sorriso maroto.

Pararam em frente á estação do Ferry. Lídia saiu e ficou fascinada com aquele braço de mar que a separava do continente. Cass levou-lhe as malas para o barco e Aileen foi comprar o bilhete. Lídia sentou-se numa colina e inspirou o ar puro. Rute fez-lhe companhia, ainda limpando os olhos. Olharam uma para a outra e não disseram nada. Simplesmente abraçaram-se durante muito tempo, até Aileen as chamar.

Lídia apressou-se a escolher um lugar á janela, para não perder de vista os seus amigos. Colocou a cabeça entre os braços e ficou a olhar para eles, tão lindos com a paisagem campestre atrás. Dava uma excelente fotografia. Pena que Lídia não gosta de fotografias. Fazem-na triste. Como agora...

Quando o barco apita a partida, Rute acena vigorosamente o braço, em sinal de adeus. Lídia imita-a, finalmente deixando as lágrimas cair com vigor. Cass limita-se a fazer uma saudação e Aileen sorri. Lídia memoriza aqueles rostos para não os esquecer nunca. O barco afasta-se e rapidamente, ela deixa de os ver. Quando se apercebe que já não acena a ninguém em particular, recolhe-se e deita-se no banco a ouvir música num leitor de MP3. É uma longa viagem até Roscoff, na França. E depois o Barreiro...

______//_____
Interlúdio: A Wolf At The Door

Acordou num sobressalto. Olhou em redor e só via a cabine do comboio escura e sombria. Lá fora, a paisagem corria atrás das cortinas vermelhas, iluminadas pelo brilho do nascer do Sol. Tinha o braço dormente por ter estado deitada em cima dele. Cheia de frio, retirou o casaco da mala e tapou-se. Estava exausta. Andava a viajar há 3 dias sem dormir ou comer decentemente. Mas estava feliz. Podia ter a memória turva mas lembra-se de ter visto as paisagens de Espanha ontem á noite, antes de adormecer. O que queria dizer que devia chegar ainda hoje a casa. Finalmente. Já tinha saudades dos pais e do irmão. A mãe devia ter passado uma semana stressante, com a filha noutro país. Era mesmo mãe-galinha, mas sempre a tinha deixado ir nesta aventura. Depois de muito pedinchar, claro.

Encontrou umas bolachas insípidas no bolso do casaco e comeu-as, enquanto se tentava lembrar do sonho que a fez despertar tão bruscamente. Só conseguia ver na cabeça uma menininha, de vestido vermelho e cabelo preto, muito parecida com ela. E estava a olhar para algo, á porta de seu casa. Era um animal qualquer, um cão talvez. Ele estava de pé, como que a guardar a porta, um sentinela. Mas ela não tinha medo, estava calmissíma. Até estendeu a mão para lhe fazer uma festa na cabeça. Quando os dedos já tocavam no pêlo escuro e grosso, ele saltou! E depois disso acordou. Estranho. Entretanto, com tanto esforço mental e com um estômago vazio, Lídia voltou a adormecer no banco.

_______//_______

Quando voltou a despertar, fê-lo com a maior calma do mundo. "É para compensar pelo susto de há pouco", pensou. Agora já eram pelo menos uma 11 da manhã, e a barriga estava tão oca que doía. Com uma mão sobre o umbigo, para acalmar a fera, procurou em todos os bolsos mais algumas daquelas bolachas sonsas, sempre era melhor que nada. Claro que podia ir ao bar do comboio ou comprar algo na próxima estação, mas a verdade é que não lhe agradava nada a ideia de deixar a cabine com as suas coisas.

Não encontrou comida, mas sim um isqueiro cor-de-latão. Ela não fumava, pelo menos agora. Mas aos doze anos decidiu experimentar para ver como era. Não deixou de o fazer até os pais descobrirem, aos 15. Mesmo assim, gostava de coleccionar isqueiros e sentir o peso de cada um na mão. Acendê-los e ver a chama dançar. Nos dias em que se sentia mais melancólica, aproximava a mão só o suficiente para sentir a queimar. Este tinha sido um presente de Cass, quando soube da sua mania. A de coleccionar, claro, não a outra. Era comprido e simétrico como um isqueiro deve ser. Tinha uma imagem de um trevo em relevo. Lídia divertiu-se a acendê-lo e apagá-lo umas quantas vezes para enganar a fome. Fartou-se depressa e, ao fim de um bocado, fazia-o mais por teimosia que por outra coisa.

Foi então que a porta da cabine se abriu com um deslizar suave. Lídia guardou o isqueiro. Um rapaz da sua idade olhava para dentro do compartimento. Era moreno e tinha o cabelo num rabo-de-cavalo. O fato azul, gasto, que usava não condizia com os ténis brancos, nem com a mala colorida, cheia de autocolantes e nem com a gravata vermelha berrante. O olhar meio-alucinado e uma boca cheia de uma substância branca cremosa completavam o personagem bizarro. Falou numa voz relaxada.

- Estás sozinha? Importas-te que fique aqui? O resto está tudo cheio.
- Não, estás á vontade.

O que havia de dizer? Não podia proibi-lo de se sentar ali. Era muito egoísmo pensar em ter a cabine só para ela. O rapaz fechou a porta, guardou a mala no canto e sentou-se á janela, de frente para Lídia. Enquanto fazia isto, ela colocava os fones do leitor de MP3 nos ouvidos, para evitar qualquer tentativa de conversa. O rapaz sentou-se.
Apressou-se a colocar a mão dentro do casaco comprido que lhe chegava aos joelhos e retirou de lá uma caixa de cartão. Abriu-a, com olhar guloso. Lá dentro estavam bolos compridos, colocados geometricamente. Sem qualquer cerimónia, agarrou num e colocou-o inteiro na boca, mastigando vorazmente. Ao mesmo tempo, emitia sons de prazer e delícia, com os olhos fechados. Lambuzava-se todo com o doce.
Lídia tinha dificuldade em desviar o olhar ou concentrar-se na música com este espectáculo decadente mesmo ali. Ele engolia tão depressa que engasgava-se facilmente e tinha de bater vigorosamente com a mão no peito.

Quando acabou, parecia que tinha acabado de fazer sexo ou coisa parecida. Foi então que olhou para a colega de cabine. Lídia apressou-se a desviar o olhar para a paisagem. Ele estendeu-lhe a caixa dos bolos.

- Queres um? São deliciosos!

Ela hesita.

- Vá lá! Tira um.

Sem paciência para contrariar malucos, Lídia aceitou. Assim que cumpriu a função de cortesia, o rapaz meteu mais dois na boca e devorou-os ruidosamente. Lídia deixou escapar um riso de crítica.

- Gostas mesmo destas coisas.
- É divinal! Nunca provei nada tão bom! (engole, com dificuldade) Desculpa as minhas maneiras - disse, limpando as mãos num guardanapo estendendo-lhe a direita - Sou o Luís.
- Lídia - responde, apertando-lhe a mão - Hem... Luís... tens uma coisa aqui (aponta com o dedo para o canto do lábio)

Luís não faz nada por um momento. Depois, tenta olhar para a própria cara e lambe o local indicado. Sorri satisfeito. Parece uma criancinha.

- Está melhor?
- Está. Obrigada pelo bolo.
- Tinhas cara de ter fome. Estás a viajar há muito tempo?
- Estou neste comboio há 3 dias. Porquê? Nota-se?
- Hum... Isso depende. Tens sempre essa cara tão bonita?

Lídia dá uma gargalhada irónica. O tom de voz dela modificou-se rapidamente para áspero e agressivo.

- Vai gozar com outra pá! Quem é que pensas que és? Só porque entraste na minha cabine, não quer dizer que me possas engatar! Não me parece mesmo nada.

Lídia não tem paciência para pessoas inúteis. É o que ela lhes chama. Aquela gente que só mete conversa com um objectivo em mente. Por isso é que os provoca o mais possível, para ver o que fazem quando percebem que não levam nada dela. A maioria abandona a conversa, ou vai-se mesmo embora dali. Não foi o que aconteceu com Luís, que simplesmente colocou uma cara de inevitabilidade e disse:

- Bolas! Eu bem tentei. Que tal mais um bolinho para a causa nobre?
- Acho que não. - sentiu uma certa satisfação com a reacção de Luís.
- Ainda bem. Não és a única com fome, sabes? Se não tivesse comprado isto na última estação, a esta altura já tinha desmaiado. Só espero que cheguemos depressa ao Barreiro.
- Também vais para o Barreiro? - perguntou, surpresa.
- Vou. Tu também?
- Sim. Moras lá? Ou estás só de passagem?
- Podiam ser ambos. Mas não moro lá. Vou só ter com uns amigos. A julgar pela bagagem que levas, diria que tu tens alguém á tua espera.
- Sim. Devem estar ansiosos. Não me vêem há uma semana.
- Onde estiveste?
- Irlanda. Já lá foste?
- Hum... acho que nunca passei por lá.
- Achas? Então? De onde é que tu vens?
- Bem, não venho propriamente de um sítio específico. Ando por aqui e ali já há uns bons 3 anos.
- 3 anos?! Os teus pais deixaram-te fazer uma viagem dessas?!
- Esqueci-os. Ninguém manda em mim. Os meus pais abandonaram-me cedo, desistiram de mim, por isso abandonei-os assim que pude. Decidi que não tenho pais, tenho professores. Quando deixam de ter algo para me ensinar, vou-me embora.
- Boa filosofia. Às vezes gostava de esquecer os meus pais.(sorri) E onde é que estiveste este tempo todo?
- Bem, maior parte do tempo estive no Japão. Mas também vi o resto da Ásia e a Europa de Leste. Depois, passei por o que quer que estivesse no caminho até onde estou agora.
- Uau! Tiro-te o chapéu. Quem me dera poder viajar assim. Mesmo para ter esta semana tive de fazer loucuras e mesmo assim os meus pais fizeram cara feia. És um sortudo.
- Digo-te já que é extremamente desconfortável andar 3 anos de comboio.
- Comboio? Porque é que não foste de avião?
- Minha cara, eu sou livre, mas não sou rico. Além disso, não gosto de voar.

Coloca novamente a mão dentro do longo casaco e retira de lá duas garrafas de Coca-Cola. Estende uma a Lídia.

- Tens sede?
- És cheio de surpresas, tu! (pega na garrafa)
- Tudo para agradar uma certa rapariga.
- (rindo-se) Já te avisei para parares com isso. Não sou dessas que vai com o primeiro tipo que aparece ou que beija no primeiro encontro ou essas tretas todas.

Todo este diálogo tinha deixado Lídia confusa mas, de certo modo, bem-disposta. Falar com este rapaz tinha-a animado, de alguma maneira. Reflectindo nestes acasos da vida, Lídia deu um gole na Coca-Cola.


(eu sei que está grande, mas se não têm tempo, voltem outro dia e leiam mais um bocado. espero que cheguem até aqui e comentem o que pensam. =D)

segunda-feira, maio 22, 2006

Mountain Skull

Luís vestia-se discretamente, e, se o visse na rua, provavelmente não olhava para ele duas vezes. Calças pretas com uma camisa branca insípida e uns ténis azul-escuro imperceptíveis por baixo da dobra das calças, que eram obviamente um número acima. Nenhum adorno inútil ou algo que se distinguisse. Para evitar que o cabelo lhe caísse no rosto cor-de-avelã e de aspecto matreiro, usava-o como rabo-de-cavalo. Se me fazia lembrar alguma coisa, era um desses artistas da beat generation que proclamam poesia em bares nova-iorquinos.
Puxou para cima da mesa um saco de plástico e de lá de dentro retirou um disco de vinil embrulhado numa capa transparente. Entregou-a ao rapaz de olhos azuis.

- Toma. Trouxe-te uma coisinha interessante. Vai lá pô-la a tocar.

O rapaz de olhos azuis obedeceu. Depois, o poeta virou-se para mim.

- Espero que não te importes, mas gosto muito mais de contar uma história com boa música de fundo. Tu gostas de música?
- Sim. - respondi.
- Bem me parecia. Costumas ouvir o quê? Rock? Pop? Tecno?
- Mais rock que outra coisa. - sentia-me mais animado a falar com este interlocutor aberto e simpático. Transmitia uma certa calma na maneira como prolongava as palavras.
- Também gosto muito de rock, mas para certas ocasiões são necessárias certas músicas. Por isso, como esta é uma ocasião importante, achei que música clássica seria o mais adequado. Conheces alguma música clássica?
- Mais ou menos. Já ouvi Beethoven, Mozart...
- Os pesos-pesados, não é? Bem, o que vai tocar agora é um pouco menos grandioso. Mas nem por isso menos belo.
- Quem é?
- Chama-se Schubert. Franz Schubert, acho eu. Ouve.

Abri bem os ouvidos para ouvir a agulha do gira-discos tocar levemente o o vinil e o tranquilizante crepitar do microfone nas colunas de madeira. Poucos segundos depois, chegou a música, quase tímida, a toques de piano e violino. Era calma, nada de grandes movimentos ou instrumentos pesados. Simplesmente aquele piano e violino, que pareciam manter um diálogo entre eles. O rapaz fechou os olhos e deixou-se embalar. Quando os abriu novamente, exibia um sorriso.

- Lindo, não é?
Acenei afirmativamente com a cabeça.
- Agora que estamos instalados, podemos ir ao que interessa. Como te disse, antes de fazeres perguntas, tenho uma história para te contar. Peço-te que prestes atenção, é muito importante. Podes não percebê-la agora, mas quero que fiques com as palavras gravadas na tua mente, exactamente como eu te as disse. Ok? Preciso da tua total concentracção. Fazes-me este favor? Depois respondo a tudo o que quiseres.
- Ok.
- Bem, uma pessoa contou-me esta história há algum tempo. É apenas um fragmento de uma lenda maior, mas, infelizmente, há muito perdida. Fala de dois budistas: um mestre e um pupilo. O mestre leva o seu aluno numa viagem de auto-descoberta e, ao fim de muitos dias de caminhada, chegam ao sopé de uma montanha. Era um local inóspito, sem qualquer sinal de vida, apenas desolação. Foi então que o mestre, Bodhisattva, disse:
" - Aquilo que pediste para ver ser-te-á mostrado. Mas o local da visão é longíquo e o caminho é longo e duro. Segue-me e não temas. Ser-te-ão dadas forças."
O aluno não colocou quaiquer objecções, e começaram a subir a montanha. Não era tarefa fácil, pois nã havia caminho definido nem plantas para se agarrarem. O próprio chão parecia inseguro, frágil e, de vez em quando, pedaços soltavam-se e ecoavam enquanto rolavam montanha abaixo. Além disso, uma neblina cobria tudo á frente dos olhos dos dois homens e não os deixava ver nada.

O rapaz de olhos azuis sorria troçando da forma como o outro parecia empolgado em contar a história, criando uma atmosfera de mistério.

- Mais uma vez, o mestre voltou-se para o aluno e disse:
" - Não temas, meu filho. Perigo não existe, apesar de o caminho ser assustador."
Continuaram a escalar e em breve anoiteceu mas eles não se demoveram. Debaixo das estrelas eles caminharam e o mestre apenas dizia:
" - Há que continuar! Não percamos tempo! A reunião é ainda muito longe daqui!"
Na escuridão, chamas que se acendiam e apagavam no mesmo instante começavam a assustar o jovem peregrino. Mas mesmo assim, não se queixou.

Aqui, o rapaz fez uma pausa, presumivelmente dramática.

- Mas, quando o Sol surgiu por trás do horizonte... o aluno gritou...
AaaahhhhhhhH!!!!!!!

O Luís estava em cima da mesa a berrar para cima de mim e eu quase caí da cadeira com o susto. O meu coração batia desenfreadamente com a surpresa. Luís riu-se.

- Desculpa, mas tinha de ver se estavas com atenção. Sabes o que o peregrino viu?
- N-não. - a minha voz era insegura e respirava lentamente.
- Bem, ele olhou para baixo e viu que o chão em que pisava, toda a montanha, era feita nada mais nada menos que de crânios. Milhares de crânios humanos era o que eles pisavam. Foi então que chorou ao mestre:
" - Mestre! Tenho medo!"
e o mestre respondeu:
" - Não temas! Olha em tua volta e debaixo de ti! Diz-me o que vês!"
e o aluno, assustadíssimo:
" - Não me atrevo mestre! Tudo o que me rodeia são crânios de homens! Tenho medo!"
e o mestre, sabiamente:
" - E no entanto, não compreendes. Não sabes do que esta montanha é feita! Fica sabendo, jovem, que cada um destes crânios é teu! Cada um esteve em alguma altura nos teus sonhos e fantasias! Nenhum pertence a outra criatura. Eles são tu e tu és eles!"

Luís parou, fechando os olhos. Olhei para o rapaz de olhos azuis, que tinha ido á cozinha fazer algo á procura de um sinal, mas nada. Ao fim de 2 minutos sem qualquer reacção, atrevi-me a perguntar.

- Já acabou?

Ele abriu os olhos.

- A história. Já acabou?
- Sim, já acabou.
- Não percebi.
- Não esperava que apanhasses á primeira. Ok, se calhar tinha essa possibilidade em mente, mas não era muito provável. O importante é isto: memorizaste-a?
- Sim, acho que sim.
- Óptimo! O resto virá por si só. Agora, penso que tens perguntas para mim. Já deves saber que me chamo Luís. Não te digo um segundo nome porque não tenho mais nenhum. Mesmo assim, estou em melhores condições que ali o tótó, que nem primeiro nome tem. Não é verdade?

O rapaz de olhos azuis não respondeu. Limitou-se a abandonar a cozinha e veio sentar-se na poltrona, a alguns metros de nós.

- E também não fala muito. Tu é que tens sorte, logo quatro nomes. (nome a designar)
- Como é que sabem o meu nome?
- Sei-o como sei que se me cortar magoo-me. Aprendi á muito tempo. Porque é que chamas tartaruga a cada tartaruga que vês? Seguindo a mesma lógica, chamo (nome a designar) a cada (nome a designar) que vejo. E já vi mais do que pensas.

Uma elevação de piano preencheu a sala. Por fim, um de nós disse algo.

- Quem são vocês?
- Isso não te posso responder. Não leves a mal, mas não é por teimosia. Não tenho a resposta a essa pergunta. É algo que terás de descobrir.
- Isso não é justo! Disseste que podia perguntar o que quisesse e respondias! Estás só a escapar-te!
- O que respondias se EU te perguntasse quem és?
- Dizia o meu nome...
- Já to disse.
- ..., o que faço, as minhas intenções...
- Então porque não perguntas simplesmente o que eu faço e quais são as minhas intenções? Achas que estão tão intrínsecas em mim que não podem viver sozinhas? Eu digo-te o que faço. Eu aprendo. É essa a minha função. Não sei fazer outra coisa. Por isso, sou um aluno perfeito. As minhas intenções? As mesmas que as tuas. Sobreviver. Faço questão de viver até morrer, o que espero adiar o mais possível. Até lá, é o que acontecer.

O tom majestoso dos violoncelos diminui até sobrar apenas um tímido arranhar de violino. Eu levanto-me.

- Posso-me ir embora?
- Claro, ninguém te mantém aqui contra-vontade. Suponho que essa seja a tua última pergunta, então.
Aceno afirmativamente. Viro as costas ás duas estranhas personagens e dirijo-me á porta.

- Espera! - diz Luís.
- O que foi?
- És livre de voltar amanhã á mesma hora, se te apetecer. O tótó nunca sai daqui e eu costumo aparecer por cá. É um favor que te peço. Ainda há coisas que gostava de te explicar.

Não lhe respondo. Abro a porta e saio para um corredor decrépito com canos expostos e ferrugem por todo o lado. Encontro o caminho para baixo e para fora e em breve estou na rua, escura ás quase 8 da noite. Corro para apanhar o primeiro autocarro que vejo.

- Achas que volta? - levanta-se o tótó da poltrona e senta-se ao computador.
- Tenho confiança que sim. Ele é diferente do que o imaginava mas todos os básicos estão lá. Vai voltar.
- Da maneira como tu o assustaste, naõ me surpreendia nada que nunca mais cá pusesse os pés.
- A entoação faz o poeta... Ele esteve no quarto do Bob, não foi?
- Sim.
- Disse alguma coisa sobre isso?
- Não. Acho que estava demasiado chocado.
- Ainda era cedo para ele ver aquilo.
- Bem, se não te tivesses atrasado, não teríamos esse problema, não é verdade? Onde estiveste?
- Com a Lídia.
- Outra vez?
- O amor não escolhe hora. Devias tentar apaixonar-te um dia destes. Não te fazia mal nenhum. É melhor do que estar fechado neste pardieiro todo o santo dia.
- Não me queixo. Eu GOSTO de estar aqui. As pessoas confundem-me. Não consigo pensar como deve ser com pessoas ao pé.
- Pensas demasiado. Como agora. Vais mesmo começar a teclar infernalmente nessa coisa com uma melodia tão bonita a tocar? Sente este Allegro.
- Para mim são só notas.
- É impossível conversar contigo. Não tens gosto nenhum. Vou-me embora.
- Agora?
- Como eu disse, o amor não escolhe hora. Vou ver a minha Lídia. Adeus.

Fecha a porta e deixa o rapaz de olhos azuis sozinho, iluminado apenas pelo monitor do computador. Em silêncio, deixa a música chegar ao fim e a agulha levantar-se sem se mover.

(hum... não tenho bem a certeza que nome hei-de dar ao personagem. a princípio pensei em dar-lhe o meu nome, mas descobri agora que me quero afastar desta personagem, apesar de lhe dar muito de mim. algumas sugestões? tem de ter 4 nomes e há preferência a Joões ou que as iniciais formem JAAS)ok, pronto, qualquer nome interessante serve. parvos tb :)

sábado, maio 13, 2006

Rubik


Não lhe perguntei mais nada. Não valia a pena. Depois de dez minutos de conversa inútil, não tinha ficado nada a saber da pessoa que me olhava do outro lado da mesa ou da situação em que me encontrava. Qualquer pergunta que lhe fizesse, ele defendia-se dizendo sempre a mesma coisa.

- Não posso. É parte da história. Ele depois conta-te.

Por isso, ali ficámos, calados, escutando apenas os ruídos da cidade lá fora, o som dos carros a buzinas e das conversas perdidas de alguém. Via o Sol descer lentamente atrás das tábuas na janela e tentava adivinhar as horas. "Já devem ser pelo menos 7 e meia", pensava, preocupado. "Os meus pais devem estar em pânico. Era suposto estar em casa há horas". Mas, apesar de me custar fazê-los sofrer assim, não fiz qualquer menção de me ir embora. Isto, no meu ponto de vista, podia dever-se a duas coisas: 1) tinha algum receio de tentar abandonar este sítio, talvez por temer a reacção do rapaz que me mantinha aqui como se fosse uma tarefa que lhe fora atribuída e 2) não posso negar que o meu espírito tinha curiosidade em saber o que estava ali a fazer, porque tinha sido conduzido pelos eventos a este cenário grotesco e colocado nesta posição. De quem estávamos á espera e que história tinha para me contar. Como é que me envolvia a mim?! Por isso, fiquei e lutei contra mim mesmo para parecer o mais calmo e sereno possível, acalmando a tempestade de nervos que ia crescendo com o passar dos minutos dentro do meu peito. Olhei para a frente. Todo este tempo, o rapaz nunca tinha tirado os olhos da minha pessoa. Cravava-me aquelas órbitas de sapo na mente, analisando, estudando e só quebrava a sua concentracção quando as circunstâncias o levavam a piscar os olhos, o que mesmo assim parecia acontecer apenas de 5 em 5 minutos. Eu limitava-me a engolir em seco e a desviar a minha atenção para outras paisagens do apartamento. Por fim, ele levantou-se.

- Lembrei-me de uma coisa. Volto já. Não saias daí.

Não lhe respondi, mas ele parecia certo que eu não iria a lado nenhum. Dirigiu-se à porta por onde tínhamos entrado e abriu-a novamente, para depois se perder mais uma vez no corredor branco. Senti um alívio quando a fechou atrás dele. A solidão acalmava-me um pouco, agora já não me sentia observado. Aproveitei para me tentar levantar. Calmamente, apoiei os braços nos lados da cadeira e ergui-me uns centímetros do assento. Ainda tinha as pernas dormentes, como quando nos sentamos de cócoras durante muito tempo. Não sentia o chão em que pisava, por isso ia-me agarrando a tudo o que encontrava, na minha tentativa de não perder o equilíbrio. Ajoeilhei-me, esfreguei as pernas e belisquei-as até começar a sentir alguma coisa. Depois disso, a sensação foi aumentando por si só e já conseguia andar. Afastei-me da mesa e comecei a explorar o espaço. Além da zona onde se encontrava a cozinha, as cadeiras e tudo isso, havia outro canto, mais escuro, que me escapou quando entrei. Era mais abafado e estava cheio de tralha empilhada e tapada com lençóis. Pelo menos maior parte. Havia caixotes com brinquedos partidos e toda a espécie de pequenos aparelhos estragados. Chegava mesmo a ver uma máquina de lavar roupa, esquecida debaixo de um velho divã a cair de podre. Num desses caixotes, encontrei um rasgo colorido que me chamou a atenção. Fui cuidadoso a colocar a mão e retirei de lá um pequeno cubo com pequenos quadradinhos autocolantes a cobrir as faces. Reconheci imediatamente como sendo um cubo de Rubik, daqueles quebra-cabeças quase impossíveis que fez furor nos anos 80. Quando era novo, tinha tido um, mas nunca o tinha conseguido resolver por isso tinha-me farto dele rapidamente. Agora, sentia-me nostálgico, por isso comecei a decifrá-lo, rodando as faces de cá para lá, de lá para cá e assim por diante. Fiquei viciado com o jogo e dava por mim a girá-lo ao acaso, sem reflectir no movimento mais acertado para o resolver. Assim estava eu tão entretido, que não dei pela porta no outro lado do apartamento, que se abra lentamente. Também não vi a figura que entrou até se dirigir a mim e me tocar no ombro. Nesse momento, assustei-me e deixei cair o cubo.

- Ei! Tem calma! Ninguém te quer fazer mal. - disse um outro rapaz, com uma voz suave e relaxada. Abaixou-se para apanhar o cubo, e observou-o na mão. Depois, olhou para mim, sentado no chão.

- Desculpa se te fiz esperar. Sou o Luís.

Estendeu a mão num cumprimento, mas não lhe consegui retribuir. As minhas pernas pareciam ter perdido novamente todas as forças com o susto e era-me impossível levantar do chão. Contudo, o Luís parecia ter levado aquilo como um insulto.

- Não tens de me cumprimentar, se não quiseres. Mas não te fiz nada de mal, pois não? Não sei o que o tótó te disse, mas só queremos conversar contigo. Depois, podes-te ir embora.

- Não é isso... - murmurei, sem o olhar nos olhos.
- Hum...?
- Não me consigo levantar. As minhas pernas estão dormentes.
- A sério? - parecia divertido - Como é que isso aconteceu?
- Foi por causa de qualquer coisa que o outro rapaz me deu ou algo assim. Caí no chão e vomitei. Depois, fiquei com o corpo todo dormente.

O sorriso desapareceu rapidamente.

- Dizes que foi o outro rapaz que te fez isso?
- Bem,... sim. Acho que sim.

Foi por essa altura que se ouviu o som de uma porta, indicando o regresso do rapaz de olhos azuis. Esfregava o braço esquerdo, que estava vermelho e falava consigo próprio, lançando pragas a Bob, provavelmente. Olhou para a mesa e parou quando não me encontrou lá.

- Ei! - gritou o outro rapaz.

Isso chamou-lhe a atenção para nós. Caminhou na nossa direcção.

- Ah. Já chegaste. Vens atra...
- És capaz de me explicar - interrompeu - porque é que eu viro as costas um par de horas e tu quase matas o pobre rapaz?!

O rapaz de olhos azuis olhou para ele e depois para mim, tentando compreender.

- Porque é que estás sentado no chão?
- Como se tu não soubesses, idiota! O que é que eu te disse antes de me ir embora?! Nada de drogas! Queria que ele estivesse sóbrio!
- Mas eu não lhe dei nada!
- Não é o que ele diz!

O rapaz de olhos azuis olha novamente para mim.

- Qual é a tua? Eu não te fiz nada.
- Como assim? Eu quase desmaiei. Ali mesmo, há bocado.
- A culpa disso foi só tua!
- Não grites com ele! Se fizeste merda, a culpa é tua!
- Já te disse que não fiz nada! Ele ficou assim porque é estúpido. Quando eu entrei aqui, ele foi-se esconder na Sala dos Relógios e respirou o ar do corredor. Eu trouxe-o de volta e fi-lo vomitar a mistura toda, mas é claro que ainda sente os efeitos. Já sabes como as pessoas não estão habituadas áquilo. Aconteceu o mesmo ao Apolinário.

Sobressaltei-me quando ouvi o nome do meu amigo.

- Apolinário?! - exclamei - O Apolinário esteve aqui?!

Ambos me olharam de cima. O segundo rapaz colocou um ar pensativo enquanto continuava a lançar o cubo de Rubik de uma mão para a outra.

- Ok - disse, por fim, com um sorriso.
- Ok o quê? - perguntou o rapaz de olhos azuis.
- Ok. Está tudo bem. Não há crise. Não tiveste culpa. - passou-lhe o cubo para as mãos.
- Eu... o quê? Eu sei que não tive culpa! Eu salvei-lhe a vida!
- Fixe.
- Fixe?
- Ei! Eu fiz uma pergunta e estou farto que não me respondam a nada aqui! Como é que conhecem o Apoliário?
- Calma. Calma. - disse-me o segundo rapaz. - Já cá estou, podemos começar. - dirigindo-se ao rapaz de olhos azuis - Ajuda-o a levantar-se e trá-lo aqui para a mesa. Sempre estamos mais confortáveis.

Com alguma relutância, o rapaz de olhos azuis obedeceu. Poisou o cubo na caixa onde o encontrei e, pegou em mim como se eu fosse um inválido e arrastou-me sem qualquer delicadeza para a cadeira mais próxima. Sentou-se ao meu lado esquerdo e em minha frente já estava o outro rapaz.

terça-feira, maio 09, 2006

Hot Milk


- Desculpa! Desculpa! Peço muitas desculpas! - exclamava o rapaz de olhos azuis enquanto se dirigia á cozinha para encher um copo de água, depois de se ter certificado que eu me aguentava na cadeira sem cair.

- Toma. Bebe. Fui muito estúpido por não me lembrar, mas a culpa também foi tua. Não tinhas nada que fugir para ali. A mistura ainda não é perfeita e faz mal a quem não está habituado. Na verdade, podias até ter morrido se ficasses lá mais tempo. E depois ficava tudo estragado. Realmente, não sei como pude ser tão distraído.

Não fazia a mínima ideia do que ele estava para ali a falar, mas a água fresca soube-me bem para acalmar as entranhas ardentes. Bebi tão avidamente que encharquei a camisola com o líquido que não conseguia meter na boca.

- Estás melhor? - continuou o rapaz - Não te dou mais àgua porque não sei o que pode fazer á mistura dentro do organismo. Mas acho que podes beber leite. Sim! Sim! Leite não faz mal! É orgânico! Volto já!

Tirou-me o copo das mãos com violência e abandonou-me para regressar para trás do balcão, abrir uma espécie de frigorífico minúsculo e aquecer o conteúdo de uma vasilha que de lá retirou.
Eu ainda não tinha recuperado completamente. A minha boca estava sequíssima e não parava de molhar os lábios com a língua, o que só piorava a sensação. A sensação de bem-estar parecia muito distante, agora que me ardia o o peito e tinha dores agudas nas articulações. A visão ainda estava um pouco turva, mas consegui olhar pelas secções das janelas que não estavam tapadas por tábuas e ver edifícios familiares. A igreja, a escola, e até a casa de um amigo meu, fácil de identificar por se tratar de um prédio muito alto no cimo de uma elevação do terreno.

- Onde estou?
- Ah! Consegues falar? Menos mal! Quer dizer que não apanhaste uma dose muito forte.
- Onde estou? - repeti - Estou no Barreiro?
- Claro. Onde mais podias estar?
- Então... não morri?
- Bem, não! Mas já te disse, foi por pouco! Mais um minuto, talvez e...

O rapaz fez um esgar de caveira e arastou o dedo indicador pela garganta, fingindo que a cortava. Continuava confuso, mas demorei um momento a avaliar o meu anfitrião. Como já disse, por ser a primeira coisa em que reparei, tinha olhos azuis. Mas não eram nada comuns. Podia-se realmente dizer que "saltavam á vista", de tão grandes e redondos que eram. Pareciam mais duas poças azuis-safira hipnotizantes. Para alguém com olhos assim, o cabelo louro não era surpresa. O do rapaz era, ao mesmo tempo, dourado e sujo, e levemente despenteado, com riscos que lhe caíam para a cara e contribuíam para uma expressão de demente. No geral era magro, quase esqueléctico, e isso via-se na cara e por as roupas que usava lhe estarem exageradamente largas. Vestia uma T-Shirt branca com letras a azul-escuro que diziam: "Vote For Pedro" e que lhe ficava quase pelos joelhos. As "jeans" descaíam um pouco para a esquerda e não pareciam ter nada a que se agarrarem no corpinho escanzelado. Por fim, uns ténis rotos e sujos para além de se poder adivinhar a sua cor original completavam o quadro.

- Uh! O leite já deve estar a ferver! Espera aí!

Não disse nada. Fiquei ali á espera até que ele me apareceu com uma chávena fumegante de líquido branco pastoso. Poisou-a na mesa e sentou-se à minha frente, com os braços cruzados e observando-me. Achei que estava á espera que bebesse o leite, por isso levei o púcaro á boca e lancei-lhe uma expressão de agrado, apesar de estar a queimar os lábios. Durante o que me pareceu ser muito tempo, cada um parecia estar á espera que o outro dissesse algo.

- Olha, eu sei que deves estar confuso. Desorientado, mesmo. Mas não corres perigo nenhum. Estás mais a salvo aqui dentro do que lá fora, com todos os carros e assassinos e coisas dessas. Se tiveres alguma pergunta, diz á vontade.

- Não me lembro muito bem do que aconteceu antes de entrar naquela sala... com o...
- O Bob.
- Isso... o Bob... Como é que eu vim aqui parar?
- Bem, se não te importas, preferia esperar que ele chegasse antes de te começar a contar coisas importantes. E isso faz mais ou menos parte da história. Mas eu prometi-lhe que esperávamos por ele. Sabes, ele gosta muito de ser o centro das atenções, contar as melhores partes. Além disso, tem orgulho sabes, o plano foi quase todo ideia dele. Eu só entrei com os pormenores técnicos. Portanto, por enquanto, não posso responder a perguntas dessas. Desculpa. podes perguntar outra coisa e eu digo se posso responde ou não.

Reflecti um pouco.

- Quem é o Bob? O que é o Bob? Podes dizer-me isso?
- Bem... ele também é parte integrante da história. Por isso... não. Desculpa.

Já estava ficar farto da atitude do rapaz. Fartava-se de me dizer para lhe perguntar coisas, mas não podia responder a uma única questão que lhe fazia.

segunda-feira, maio 08, 2006

Crossed Windows


O rapaz de olhos azuis murmurava enquanto procurava a chave. Eu continuava a sentir-me ausente e leve como uma pena. Todo o tipo de pensamentos descoordenados e sem nexo me vinham à cabeça e eu ria-me de todos eles, do rídiculo que eram. Cheguei a imaginar que alguém, um ser místico, sei lá, me havia drenado todas as "partes más" do meu ser, os medos, preocupações ou ansiedades, e as substituiu por, nada mais, nada menos que gelado de framboesa, que me escorria pelas veias, fresco e viscoso e me enchia de alegria.
Ouviu-se um clique quando a fechadura finalmente cedeu e o rapaz abriu a porta. Estava preparado para uma sala luminosa, cheia de brilho, digna do reino dos céus... não para o que vi. Fiquei um pouco confuso quando observei o outro lado da porta para encontrar um apartamento imundo, uma divisão cheia de ferrugem e bolor, obviamente descurada e contrastando fortemente com o imaculado corredor em que me encontrava. Mesmo á minha frente, havia uma mesa de desenhador, daquelas que os arquitectos usam, cheia de papéis desorganizados e com um prato de comida vazio em cima. Ao lado, no chão, encontrava-se um copo apenas com umas gotas do que parecia sumo e laranja. Mais à frente, havia uma cozinha, cuja única delimitação em relação ao resto era o próprio balcão, também cheio de tralha. Não encontrei muito mais. A sala era pequena. Um sofá individual vermelho estava encostado a um cadeeiro de pé, com pilhas de livros que o rodeavam, formando uma pequena muralha.
Descobriam-se ainda, aqui e ali, objectos sem ligação entre eles, como um globo terrestre de madeira, com alguns dos continentes já apagados; um giradiscos com aparelhagem, e dezenas de discos cuidadosamente arrumados, um inédito comparado com o que tinha visto até aí; um computador com uma aura amarelada, de tão antigo e mais uma mesa, de jantar, com cadeiras em redor, todas diferentes umas das outras. A luz entrava por janelas parcialmente tapadas com tábuas a formarem cruzes, ocultando grande parte da paisagem lá fora.
Perdia eu tempo nestas observações, já o rapaz se encontrava a pendurar as chaves num cabide próprio, seguindo depois para o lavatório a fim de lavar as mãos, sujas de sangue do felino sacrificado. Não me ligou nenhuma enquanto não completou uma espécie de ritual, em que esfregava vigorosamente cada centímetro de pele com uma escova minúscula. Depois enxaguava, ensaboava, enxaguava novamente, mais sabão, e uma última passagem por água. No fim, ficou a admirar as mãos limpas por um minuto antes de olhar para mim.
- Entra. Podes sentar-te. - indicou-me uma das cadeiras.

Não fiz cerimónias. Coloquei um pé em cima das tábuas rangentes, mantendo o outro na brancura fria do corredor. Uma onda percorreu o meu corpo, desde a ponta dos pés até aos cabelos. Senti um arrepio desagradável na espinha. Comecei a suar. O rapaz não estava a ver-me, limpava a mesa de jantar com um pano amarelo. Tentei arrastar o outro pé para esta sala, mas este não me obedecia. Fiz tanta força que me vieram lágrimas aos olhos. Já tinha a cara encharcada, quando o rapaz finalmente largou tudo o que estava a fazer para me ajudar. Tentou apanhar-me, mas a minha queda foi mais rápida. No segundo seguinte, estava no chão, a debater-me com o meu próprio corpo, o outro pé ainda se recusava a abandonar o corredor.

O rapaz agarrou-me a cara, abriu-me os olhos com os dedos e colocou-me a mão esquerda na garganta.

- Raios! Esqueço-me sempre! Vá, caraças! Vomita!

Não me chegou a repetir a ordem. Senti a boca quente quando o estômago rejeitou o conteúdo e o expeliu. Sujei ainda mais o chão verde-podre do apartamento. Senti imediatamente um alívio. O rapaz esperou por mais réplicas antes de me ajudar a levantar e me sentar numa cadeira, eu ainda com espasmos. Não cheguei a perder a consciência, mas não conseguia falar, ouvir ou sentir.

sábado, maio 06, 2006

História de uma viagem ao Norte VII

"Bem, nessa noite não fizemos muito mais. Depois do jantar ainda demos umas voltas por Guimarães e vimos, entre outras coisas, raparigas a dançar Madonna (aquela irritante Hung Up) em cima de um palco no meio de uma praça. Já na pensão, juntámo-nos no quarto das raparigas para ver televisão e jogar um Verdade ou Consequência muito rasca mesmo. Já estávamos quase a dormir ao fim de um bocado. Voltei para o quarto e adormeci enquanto o Antunes via Wrestling na televisão.
Não se pode dizer que tenha dormido confortavelmente. De manhãzinha, despachei-me enquanto esperava a Cristiana pois tinha ficado combinado que seríamos nós a ir comprar o pãozinho quente. Foi o que fizemos. Voltámos à pensão a tempo de os apanhar a subir para o terraço, onde era servido o pequeno-almoço. Tratámos de nos alimentar enquanto observávamos a paisagem, sempre com aquela árvore solitária a observar-nos. Conversámos sobre o que íamos ver hoje. Se me lembro correctamente (e é um pouco embaraçoso se não me lembrar), fomos visitar primeiro o castelo de Guimarães e só depois fomos à Penha ou lá como se chama. Um parque natural, muito bonito. Então, deixámos as chaves na recepção e lá fomos. O castelo era ali perto, portanto não tivemos de andar muito. Pagámos a entrada e desatámos a explorar todas as divisões (aquelas a que tínhamos acesso, claro). Deveras interessante. Vimos um ou dois quartos, a sala de jantar (acho que se lhe pode chamar isso), as tapeçarias maravilhosamente bordadas com guerras e heróis, os quadros de personalidades da altura, etc. Uma das coisas que gostei mais foram as janelas com bancos para uma pessoa se sentar e observar a paisagem, que, devido a uma certa distorção que os vidros ofereciam, não sei bem porquê, mas parecia mais… antiga. Como se estivéssemos a ver mesmo o que os antigos habitantes do castelo viam.
Bem, depois de termos explorado todo o interior, incluindo uma capela genial onde até se ouviam cânticos gregorianos (uma gravação, obviamente) e as duas maiores tapeçarias que eu já tinha visto decoravam duas das paredes, saímos para ver o exterior do monumento. Pelo caminho ainda encontrámos um homem que nos sugeriu visitar uma casinha que ali estava á nossa frente. Revelou-se, afinal, uma espécie de santuário, com pessoas enterradas debaixo do chão de pedra. Giro.
Fomos ver as muralhas do castelo e foi por essa altura que os meus companheiros de viagem aprenderam algo sobre mim. Sempre tive um certo receio de alturas ou locais altos, portanto deve ter parecido muito estranho a todos eles quando me viram a subir as escadas encostadíssimo à parede, dando passos cuidadosos (verdade seja dita, também não custava nada porem um corrimão naquelas escadas, sinto-me descriminado). Não é preciso salientar que fui alvo de risos (não de maldade, mas simpáticos) e motivo de conversa galhofeira. A coisa não melhorou quando tivemos de passar por uma ponte de madeira e a Sara, na sua eterna simpatia, começou a dar saltos em cima dela e a abaná-la. Ah ah.
Mas, nem este bloqueio psicológico me impediu de subir á torre mais alta, através de umas escadinhas que pareciam ter sido construídas para bonecas. No entanto, valeu a pena. A vista era maravilhosa e foi um dos muitos momentos da viagem em que tive mais pena de não ter trazido a porcaria de uma máquina fotográfica.
Vimos tudo lá por cima, incluindo os escritos de certos enamorados no telhado, o que parece ser uma tradição em todos os sítios históricos. Chegou então a hora de descermos e ainda brincámos um pouco nos jardins, onde exibi o meu mundialmente famoso salto de alegria (que poucos conseguem fazer correctamente, é preciso que se note) e tirámos fotos artísticas e outras nem tanto, aliás, bastante parvas, mas no bom sentido.
Agora, há uma coisa que não me consigo lembrar (quem me manda a mim fazer intervalos tão grandes entre posts?). Eu acho que choveu, mas não tenho a certeza. Contudo, isso também não acrescenta muito á história e, se me tiver esquecido de algo até agora, a Sara pode sempre lembrar-me nos comments. Posso ainda salientar que, durante os nossos passeios, a cantoria era uma constante. Em grande parte por causa da Vitória, com um repertório que havia sido alimentado durante anos por música brasileira (com destaque para as canções dos filmes da Disney, quando ainda eram dobrados em brasileiro), rock, pop e algum gospel. Eu tentava acompanhá-la sempre que sabia a letra, ou introduzindo nova música do meu repertório (que se compõe principalmente por musicais e rock), mas rapidamente me diziam para me calar.
Enquanto isto, a Tânia salientava a importância do kuduro ou kizomba (não sei reconhecer estilos) com duas modinhas (sempre acompanhadas pela respectiva dança). “Tem que dançar o salé, tem que sentir o salé” era a primeira e era substitúida por vezes pela “Casamento… casamento…”. Estas frases eram as únicas que ela dizia de toda a música, mas era hilariante vê-la cantar isso enquanto saltitava de um lado para o outro com as mãos no ar.
Bem, o castelo está visto, vamos à Penha."

domingo, abril 23, 2006

História de uma viagem ao Norte VI

"Ah! Guimarães, finalmente, a cidade que respira história! Saímos do comboio cansados de tanta viagem e dirigimo-nos imediatamente e um daqueles placards que as cidades importantes têm, com o “Você está aqui” carimbado com um círculo enorme. A Vitória seguiu o dedo encostado no placard, (porque parecia ser a única que sabia o que procurar) e começámos a caminhada pela cidade, em busca da nossa pensão. Com curiosidade, ainda tive tempo de observar, ao longe, nas montanhas que nos rodeavam, uma árvore muito estranha. Quer dizer, a árvore em si nada tinha de estranho, o curioso era ser uma árvore tão alta, no cimo da montanha sem nenhuma outra árvore à volta. Nem nada mais alto que um arbusto. Isso dava àquela planta um significado quase sombrio, como se fosse um vigia. Comuniquei a minha descoberta à Sara (parecia ser a única minimamente interessada) mas lá tivemos de deixar a árvore em paz, porque a caravana não espera por ninguém.
Subimos a rua e vimos as decorações de Páscoa (as quais o pessoal do Norte levam muito mais a sério que nós do Centro), com bandeirinhas que mostravam o caminho para uma igreja lindíssima com o devido porte histórico. As casas rústicas davam um aspecto simpático à praça onde nos encontrávamos e havia espaços verdes com fartura.
Foi mais acima que tivemos de pedir direcções para a pensão. E foi também aí que recebemos a primeira impressão com gente rústica do Norte. (estou a ignorar o empregado de café que nos atendeu no Porto, mas esse também merece alguns créditos) Nem vale a pena dizer qual de nós viajantes foi o primeiro a abordar os dois senhores que conversavam animados. Mal a Vitória se aproximou, mostraram-se todo ouvidos. “Desculpe, mas onde é a rua tal-tal-tal?” “Então, menina, é já ali ao pé do estádio” “Pois, mas é que nós não somos de cá” (devo ainda dizer que o tom de voz da Vitória, quando interpela alguém para “negociações”, ganha uma aura angelical e inocente que me surpreendeu bastante).
Bem, graças à ajuda desses dois indivíduos, do taxista e do homem que seguia no táxi (que parecia árabe ou uma coisa assim, tive dificuldade em percebê-lo por causa da falta de dentes), conseguimos tomar o rumo apropriado ao nosso destino. Pelo caminho, ainda vimos umas varandas catitas, levámos com fumo de autocarro na cara, desviámos a atenção do André e da Cris de lojas de desporto e da Sara de uma loja de piercings, ou da Vitória e Tânia de lojas de roupa. Não pretendo excluir-me desta atenção em lojas propositadamente, se houvesse alguma loja que me interessasse naquela rua, como uma livraria ou uma DVDteca, teriam de me descolar da montra, mas eu, pelo menos, não vi lá nenhuma.
Uma coisa sobre Guimarães para a qual já me tinham alertado é o trânsito, que é caótico. Não tive chance de comparar dada a nossa curta estadia, mas já ouvi dizer, inclusivamente, que é pior que em Lisboa, o que já é dizer muito.
Passámos por muitos sítios em que dissemos: “Temos de vir aqui”. Claro que alguns desses locais nunca nos viram pôr lá os pés, tais como a Biblioteca (nós tentámos, mas tinha acabado de fechar) e a igreja lá perto. Mas passeámos bastante e vimos muitas coisas.
Finalmente, chegámos à pensão, onde nos indicaram os quartos, ao lado um do outro. Ou melhor, o quarto que elas as quatro partilhavam ficava mesmo ao lado do buraco que era habitado por mim e o Antunes. Elas tinham sala de estar, mini-frigorífico e uma vista para a rua (e via-se aquela estranha árvore). Nós só tínhamos casa-de-banho e quarto, com vista para um beco cheio de chaminés e aparelhos de ar-condicionado de outros apartamentos.
Pusemo-nos à vontade, o André e eu, enquanto as madames tomavam banho ou trocavam de roupa. Aproveitei para organizar as minhas coisas (gosto de ter uma mesa-de-cabeceira com os objectos bem-ordenados quando vou de férias) e para pôr a leitura em dia. Claro que isto foi depois de já ter tomado banho, razoavelmente bem. O Antunes também tomou banho e ainda esperámos bastante tempo (o André a ver televisão e eu a acabar o “A Sangue Frio”) até elas se despacharem e irmos todos dar uma volta.
O plano era encontrar um super-mercado e abastecermo-nos para na manhã seguinte irmos à Penha, um parque natural maravilhoso. A Tânia e a Vitória precisavam também de encontrar um Montepio para que a primeira pudesse levantar dinheiro.
Lá descobrimos uma superfície comercial, que, por ironia, se encontrava subterrânea. (eh eh, gostaram?) Foi o super-mercado mais estranho em que já entrei, porque estava de tal modo limpo e organizado que parecia intocado por mãos humanas. Além disso, as luzes brancas de néon davam-lhe uma aura de laboratório ou corredor de hospital. E estava quase vazio, o que lhe conferia ainda mais ambiente Twilight Zone.
Compras feitas num instante, em parte graças à organização da Vitória e ao conhecimento do Antunes no que respeita a comparação de preços. De volta para a pensão, para depois sairmos a ir jantar.
Dito e feito, passeámos pela cidade e encontrámos um snack-bar onde estavam a passar DVD’s de wrestling. Fantástico, a Sara e o Antunes não demoraram a sentar-se de frente para a televisão de plasma gigante. (também aquilo estava vazio, tirando um gajo estranho numa mesa que também estava concentrado na Tv)
Pouco tempo depois, estávamos já a comer os nossos hambúrgueres (de carne ou de soja) e as nossas francesinhas (que eram mais compridas que o meu braço) quando entra outro personagem, que cumprimenta o gajo que já lá estava sentado da seguinte maneira (e sempre com aquele delicioso sotaque nortenho): “Então filha da puta. O que é que fazes, caralho?”. Senti-me finalmente no Norte. Foi também mais ou menos nesta altura que a Vitória notou que a sua bebida estava fora de prazo. Imediatamente pediu para lhe trazerem uma nova (autoritária, como sempre). Então, foi a vez do André ter reparado que a sua bebida também estava fora de prazo e também pediu que lhe trouxessem uma nova (isto com o empregado cada vez mais atrapalhado). “Peço desculpa. Não se preocupem.”, dizia enquanto trazia as novas bebidas. Pois…
Acontece que também as novas bebidas (pelo menos a da Vitória) também estavam fora de prazo. “Tas a brincar?”, perguntava, nervoso o pobre rapaz. Finalmente, trouxe mais uma rodada e desta vez tudo parecia bem. Não faço a mínima se o meu IceTea estava fora de prazo, nem data de validade tinha, mas não sabia mal, portanto, para quê incomodar-me?"

domingo, abril 16, 2006

História de uma viagem ao Norte V

"Era meio-dia e tal quando chegámos ao Porto e tínhamos até às 2 horas para apanhar o comboio para Guimarães. Primeira preocupação: tínhamos fome. A solução? Uma rodada de bifanas à moda do Porto num café perto da estação. E digo-vos uma coisa, eles sabem fazer bifanas no Porto! Se a Sara não fosse vegetariana, tinha adorado mas nem toda a gente é perfeita.
Ora bem, com o bucho cheio e vontade de andar, decidimos visitar uns sítios antigos ali perto. Subimos por uma inclinação, descemos por ruelas e passámos pelo mercado, onde cheirámos o peixe. Por fim, atingimos um ponto alto, deixámos as malas a descansar (aquelas porcarias pesam, caraças!) e maravilhámo-nos com a vista. Dali conseguia ver pelo menos uma dúzia de produtoras de vinho, cada uma com o seu placard. Claro que se olhasse para baixo e para a direita, via também os bairros degradados com pessoas suspeitas, mas já me tinham dito que o Porto é assim.
Descansámos ali um pouco e tirámos fotos (menos eu, que não levei máquina de filmar ou fotografar, em parte por medo que fosse gamada, em parte por preguiça de fotografar/filmar e em parte por achar que sou um péssimo fotógrafo/cameraman e logo não valia a pena perder tempo com isso). Segundo me contaram, parece que ou a Vitória ou a Cris foram responsáveis por danificar um corrimão de pedra (quem manda sentarem-se?).
Mais descansados, regressámos à estação por outro caminho a fim de comprar os bilhetes para Guimarães. Ao chegarmos lá, ainda houve tempo para nos separarmos. O Antunes e a Cris foram ver revistas ou qualquer coisa do género e a Sara decidiu praticar o seu conhecido hábito de se afastar sozinha sem dar sinal e deixar toda a gente preocupada. Aparentemente foi tirar fotos.
Eu? Eu acompanhei a Tânia e a Vitória na aquisição dos bilhetes, onde testemunhei mais uma conversa amigável entre esta última e o homem da bilheteira.
Depois, sentámo-nos encostados a uma parede no átrio, já todos juntos outra vez, e fizemos os possíveis para passar o tempo. Enquanto eu me assustava com o miúdo de olhar assassino que estava sentado perto de nós, a Sara fazia o “swing” com umas bolas presas em fios com fitas a voar à volta e a Cristiana praticava malabarismo. Foi mais ou menos na altura em que uma delas colocou um chapéu no chão a pedir moedas (e após uns voos rasantes à cabeça de certas pessoas com aquela coisa do swing, apesar de algumas andarem mesmo a merecer por se porem à frente), que o senhor guarda da estação, senhor muito importante, nos disse para parar com aquilo. E foi daquelas alturas em que temi que o feitio da Sara ou da Vitória as levasse a lançar algo à cabeça do agente da autoridade. Felizmente, a única coisa lançada a ele foi uma língua de fora.
Bem, bem, é claro que aconteceram mais coisas na estação de S. Bento mas não me lembro de algumas e não vos quero aborrecer com facto irrelevantes como a rapariga que parecia levar a casa inteira na mochila ou os namorados que não se despegaram durante quase toda a nossa estadia lá (e que a princípio pensei tratarem-se de duas raparigas, mas sobrevivi com a decepção). É altura de apanhar o querido comboio com destino final no berço da nação.
Tomámos os nossos lugares, comprimimos as malas e ainda houve tempo para eu fazer figura de parvo quando um idoso nos perguntou se o comboio ia para a Travagem. Eu tentei, juro que tentei ler o mapa das linhas, mas a sério, pessoal, fica aqui um aviso. Nunca me peçam direcções. Por favor. Pelo meu e vosso bem. Eu nem cá no Barreiro consigo indicar ás pessoas onde é a Avenida do Bocage. Já sabem, peçam a outro.
De qualquer forma, uma senhora de idade salvou-me do meu embaraço e parecia que, afinal, o comboio não parava na Travagem. Ou parava? Na verdade já nem me lembro. Desliguei imediatamente do assunto.
De resto, a viagem continuou tranquila. Eu, a Sara, a Vitória e a Tânia estávamos sentados todos juntos e o Antunes e a Cris estavam juntos noutro lugar (isto é um padrão comum, podem começar a suspeitar de alguma coisa entre eles). Nós os quatro conversámos sobre a escola, o namorado da Tânia, colegas meus, colegas delas, a gravidez e o exame à próstata: qual o mais doloroso? Interrompíamos a conversa para um de nós gritar: “Yellow Car”. Permitam-me explicar. É um jogo. Não olhem para mim, foram elas que o inventaram, ou pelo menos, foi a Vitória.
É o seguinte: os carros amarelos são raros, por isso, sempre que um de nós avistava um, tinha de dizer, antes dos outros: “yellow car”. Bastante simples. A Vitória parecia ter um talento inato para aquilo, por isso a sua pontuação estava sempre acima de qualquer um de nós (se é que alguém andava a tomar nota). Este jogo perseguiu-nos, juntamente com outras coisas, durante toda a semana no Norte e desconfio que ainda não me vi livre dele mesmo cá no Barreiro."

sexta-feira, abril 14, 2006

História de uam viagem ao Norte IV

"Na sexta-feira, dia 31 de Março, sensivelmente um mês depois de termos começado a planear a viagem, cheguei acompanhado pela minha mãe e com o meu saco de viagem à estação dos barcos. Era o primeiro e ainda tive de esperar uns bons 10 minutos antes de aparecerem a Cristiana, a Vitória e a Tânia, todas juntas. O Antunes chegou um pouco depois.
A 5 minutos de partir o barco, só faltava a Sara. Onde estaria? Segundo as suas amigas, tinha estado na borga na noite passada, por isso devia ter custado a acordar. A própria Sara disse mais tarde que tinha acabado de acordar quando chegou à estação.
Mas antes disto, estávamos preocupados. Comprámos imediatamente bilhete para ela, de modo a estarmos prontos assim que chegasse. Claro que se ela se atrasasse, podíamos sempre apanhar o barco 10 minutos depois, mas tal nem foi necessário. Com a sua mochila gigantesca (que havia comprado já a pensar no InterRail que quer fazer para o ano que vem), a Sara foi avistada e dirigimo-nos para o barco.
Fui o último a reparar nela, o que é estranho pois normalmente consigo detectar aquela mancha de cabelo amarelo no meio da multidão. Apressámo-nos a despedir-nos dos nossos pais e a picar os nossos bilhetes.
Antes de entrarmos encontrei ainda a minha prima. Ela, que na noite anterior me tinha telefonado a dar dicas de sítios a visitar em cada cidade, desejou-me ali na prancha boa sorte mais uma vez e despediu-se de mim.
A viagem de barco para Lisboa foi normal, sem nada a declarar. Entretíamo-nos a ler suplementos e a conversar um pouco. Só em Lisboa é que me despedi da minha mãe, pois ela apanha todas as manhãs aquele mesmo barco para ir enfrentar a multidão raivosa no seu emprego de funcionária pública. Quanto a nós, caminhámos cerca de um quarto de hora (demorámos mais por causa dos sacos e mochilas) até à estação de Santa Apolónia, ironicamente onde o meu pai trabalha (mas ainda era cedo para o encontrarmos por lá, visto que me despedi dele em casa ainda meio a dormir).
Imediatamente me colei à Vitória para comprar os nossos bilhetes (especiais, estão a ver, porque ambos os nossos pais trabalham no ramo da ferrovia). Sim, o meu pai trabalha para a Refer e o dela na CP, logo temos direito a passes especiais que nos dão 4000 km grátis de viagens, quer de comboio, quer de barco, os quais deram muito jeito nesta aventura.
Pois bem, bilhetes comprados (após uns bons 10 minutos durante os quais me apercebi que a Vitória, além de líder natural, era também uma negociadora feroz, autoritária, mas sempre simpática com o homem que nos vendia os bilhetes e se ria de nós), entramos no comboio, arrumamos as malas e tomamos os nossos lugares. Temos uma longa viagem até à estação de São Bento, no Porto, por isso é a melhor altura para vos tentar dar uma descrição detalhada dos restantes membros da nossa expedição.
O Antunes e a Cristiana já foram analisados aqui, mas apenas deixei várias pistas sobre a Sara e a Vitória e da Tânia ainda nem comecei, mas vamos por partes.
Começo pela Sara, que é quem conheço melhor das três mas mesmo assim parece-me ser a pessoa mais difícil de descrever. Disse antes que costumo conseguir detectá-la ao longe, mas isso deve-se principalmente ao contraste que o cabelo curto e louro dela faz com as roupas pretas que usa (geralmente, pois também veste cinzento mas nunca nada muito colorido, salvo algumas excepções como meias ou tènis). Mas cuidado! Ao contrário do que esta vestimenta poderia dar a entender, odeia ser chamada de gótica, preferindo o termo “pseudo”, seja lá isso o que for.
É difícil sequer considerar uma análise psicológica à Sara, mas se tivesse de dar algumas “guidelines”, seria um por vezes exagerado sentimento de independência e uma atitude de, nas suas próprias palavras “odiar as pessoas”. Mas isso não a define, longe disso. É uma daquelas pessoas que tanto pode ser o ser humano mais simpático e amigo, como pode dizer coisas que magoam mesmo e te deixam em baixo. E é também uma das minhas pessoas favoritas, e olhem que a lista é pequena. Também se deve dizer que tenta disfarçar a sua inteligência com uma enorme auto-crítica, que em certas alturas chega a ser irritante. E não me arrisco a dizer mais.
Quanto á Vitória, tal como a Tânia, pouco poderia eu dizer neste começo de viagem, mas graças ao tempo que passámos juntos nos dias seguintes, pude traçar uns rabiscos psicológicos. A primeira, como já viram, não tem quaisquer problemas de timidez. Devo confessar que, antes de a conhecer, pensava ser uma “sex-bomb” com algumas qualidades próprias de uma ruiva, apesar de não o ser (devem ser os olhos verdes e as sardas que nos levam a essa impressão). Esta aura de superficialidade que eu colocava à sua volta desvaneceu-se quando descobri, entre outras coisas, que lia talvez até mais que eu, ouvia excelente música (além de cantar lindamente, o que foi mais que suficiente para travar os meus impulsos musicais). Era também a única que sabia onde ficavam as pensões, o que íamos visitar no dia seguinte, a que horas eram os comboios, portanto, a líder.
A Tânia era diferente, pareceu-me um pouco mais calada, mais reservada. Ingenuidade da minha parte, pois aprendi que, quando tem algo a dizer, di-lo. Quando tem uma opinião sobre uma pessoa, boa ou má, mostra-a sem pudor. Dir-se-ia ser uma rapariga frontal, que diz sempre o que pensa. O facto de ter namorado explica as tantas vezes que olhava para ela e a encontrava de telemóvel na mão, a mandar mensagens. Pelo que me pareceu, tem alguns complexos em relação à sua própria pessoa, como pensar que é gorda, coisa que não é. Mesmo nada. Mas quando gozamos com isso pode mesmo ficar ofendida, o que nos deixa destroçados. Foi provavelmente a pessoa que fiquei a conhecer menos bem nesta viagem e tenho pena disso, pois é uma rapariga divertida e bem disposta."

quarta-feira, abril 12, 2006

História de uma viagem ao Norte III

"Então, nesse mesmo dia, fomos falar com a Cristiana. Encontrámo-la quando regressámos à escola, no pátio. É mais uma daquelas personagens. Conheço-a há mais tempo do que o Antunes ou o Cláudio mas ela era muito diferente naquela altura. De menina boazinha passou a freak por natureza. As roupas de, bem, totó deram lugar a trajes multicoloridos e estranhas combinações. Mas o que mais se alterou foi o cabelo. Os cortes certinhos foram selvaticamente ceifados por golpes de tesoura feitos pela própria. O que restou no fim foi um penteado que lhe garantiria a entrada nos Duran Duran. Era esta a rapariga que parecia indicada para nos acompanhar. Poderia, no entanto, existir um obstáculo: a sua mãe.
A mãe da Cristiana é uma manipuladora autêntica. Em parte, isso explica as opções de moda chocantes da filha. Reza a lenda de que, certa vez, durante uma excursão de campismo da escola, sem saber para que parque da campismo seguia a filha, a mãe pegou no carro e realizou uma perseguição ao autocarro, à vista de toda a gente. Portanto, apesar de, com o tempo, este controlo sobre a filha ter diminuído um pouco (pelo menos é o que me parece), podia ainda causar dificuldades.
Felizmente, pelo que a Cristiana nos disse nesse dia, não haveria problemas dessa espécie. Aliás, se tivéssemos mantido a ideia inicial de ir para o estrangeiro, aí sim, a sua participação estaria comprometida. Assim sendo, garantiu desde logo que viria connosco. (embora, devo dizer, no caso da Cristiana, isto nem sempre é muito reconfortante. Podia fazer uma lista das vezes que já combinámos coisas e ela desmarca á última da hora)

Adiante, com mais um membro do grupo, decidi falar com o Apolinário durante uma aula de Geometria. Se não conhecem o Apolinário, imaginem um rapaz teimoso, sarcástico, egoísta e até um pouco convencido e, no entanto, praticamente impossível de não gostar dele. Prometeu que iria pensar na ideia, mas, tal como eu previa, depressa a recusou e preferiu seguir a populaça para Lloret.
Resumindo uma longa história, ocorreram muitas alterações ao grupo original de exploradores. No dia D, éramos seis. O Cláudio havia desistido por motivos que me são alheios e tinham-se juntado a mim, ao Antunes e à Cristiana mais três raparigas. A Sara, grande amiga minha, que não tínhamos convidado antes porque ela já tinha pago algumas prestações de Lloret mas, felizmente, conseguiu reaver o dinheiro e quis vir connosco. Com ela trazia duas colegas: Vitória e Tânia.
Uma das coisas mais difíceis de decidir foi que cidades visitar. Eu, o Antunes e o Cláudio tínhamos em mente Porto, Guimarães e Braga.
E assim ficou planeado durante uma ou duas semanas. Contudo, quando se juntaram a nós a Tânia e a Vitória, vimos que esta última não podia ir ao Porto. Não me lembro das razões (ou nunca as soube), mas imediatamente Coimbra veio substituir o Porto como paragem final da nossa viagem. E, vendo bem as coisas, ainda bem porque acho que preferi visitar Coimbra.
Mesmo assim, eu só soube dos destinos fixos para a nossa expedição quando o Antunes me disse que elas (principalmente a Vitória, pois a Sara e a Cristiana sabiam tanto quanto eu) já tinham marcado pensões em cada cidade, anulando assim o nosso plano de dormir em pousadas da juventude ao longo do caminho. Mais uma vez, ainda bem que o fizeram. Não sei como é uma pousada da juventude (nunca pus os pés em nenhuma) mas, pelo que me disseram, não é muito agradável. Além disso, com excepção de Guimarães, dormi lindamente em cada quarto. As pensões eram fabulosas. Foi mais ou menos nesta altura que me apercebi que esta viagem tinha um líder e que esse líder era a Vitória."