quarta-feira, janeiro 10, 2007

sábado, dezembro 30, 2006


Já passou um ano desde que criei este blog. Por mais triste que seja, se não fosse por isso, se calhar nem estava a escrever isto.

Quando comecei, pensei fazer um diário digital dos meus pensamentos, do meu dia-a-dia, da minha pessoa. Rapidamente me dei conta de como sou aborrecido e de como tudo o que escrevia parecia altamente enfadonho e pedante. Quão egocêntrico é preciso ser para ter uma página na internet e usá-la só para se mostrar às outras pessoas? Por isso, durante uns tempos, nada aconteceu...

Depois, algo se alterou. Um belo dia, em vez de dissertar baboseiras no meu fotolog, comecei uma história, escrevinhei umas quantas frases e, quando me dei conta, tinha um texto. Fiquei muito surpreendido e coloquei-o no fotolog. Uns dias depois, vi os comentários que lhe haviam feito e como tinham gostado. Depois, pediam-me uma continuação. "Muito bem", pensei. "Acho que posso fazer isso".

Novo texto, novas críticas favoráveis. Talvez tivesse tropeçado em algo interessante, parecia. Mas depressa me apercebi que talvez o fotolog não fosse o local mais indicado para colocar estes textos. Virei-me então para o blog, tão desaproveitado, tão convidativo, e comecei a postá-los, às prestações nesta página. O meu blog havia assim ganho novo fôlego e eu divertia-me a escrever os pedaços do que eu pensava ser uma história maior a flutuar na minha cabeça.

Pois bem, o tempo foi passando e eu gostava cada vez mais do que escrevia. Mas, talvez uma causa para isso, também demorava cada vez mais tempo entre posts, ao ponto de postar uma vez por mês. O último intervalo demorou bastante mais, como puderam ver aqueles que têm a bondade de me visitar regularmente e a quem eu agradeço imenso, porque me dão a certeza de não estar a escrever para o boneco, ou só para mim. A razão deste atraso, além da falta de tempo que a recente entrada na universidade me trouxe, vem de considerações que fiz acerca da história em si.

Pensava para mim mesmo que, se queria realmente colocar cá fora toda a narrativa que tinha dentro de mim, talvez devesse organizá-la, planificá-la como um mapa bem estudado, em vez de escrever fragmentos sem nexo de histórias. Não estou a deitar fora nada do que escrevi, aliás, sinceramente, adoro estes pequenos devaneios, mas é precisamente isso que são, devaneios. E eles merecem mais, merecem tornar-se parte de algo maior, esse algo que nunca me vai deixar descansar enquanto não conseguir exprimir verdadeiramente. Assim, considerem este blog, desde que comecei a colocar textos fictícios, como um caderno de rascunhos, ensaios para algo maior, algo que espero algum dia ter o "engenho e a arte" para contar. São tantos os detalhes e personagens que todos os dias se colam à história, que por vezes tenho a sensação de ter um verdadeiro épico em mãos.

Quanto ao destino deste blog, o assunto que me fez escrever isto em primeiro lugar, só posso dizer que, no mínimo, manter-se-á como está agora. Não tenciono apagá-lo ou aos meus posts. No máximo, continuarei a precisar dele para os meus "ensaios" e posso vir a postar mais fragmentos. Até lá, espero que continuem desse lado e critiquem. Sem críticas, estarei a escrever uma história só para mim. Obrigada a todos. Bom Ano Novo!

domingo, outubro 29, 2006

a box for the invisible mouth, no light can come in, no shine can come out


Daniel deitou-se no chão como, de resto, fazia sempre que a vida lhe atirava cuspo à cara. Sara olhava-o do outra lado da sala, com desdém espelhado nos olhos. Sempre que ele fazia isto, ela ficava um pouco mais longe de obter a sua liberdade, agora reduzida aos poucos minutos que Daniel se arriscava a projectá-la no mundo. Costumava deixá-la vaguear por entre as almas, ocupadas a ir deste sítio para aquele, na sua imensa pressa de deixar o mundo com as mãos sacudidas da poeira. Um sentimento de trabalho bem feito. Dúzias de gerações que se mataram com esforço de fazer o mundo girar sem nunca pararem para perceber que outros mecanismos actuam no seu eixo. Parar é morrer, disseram, parar é morrer. Viver é morrer, e trabalhar não é viver. Era a estes e outros pensamentos que Sara se dedicava no seu dia-a-dia a observar as pessoas. Não era que simpatizasse muito com elas, simplesmente não tinha nada melhor para fazer. Enquanto Daniel estava na escola, não precisava dela. Ocupava-se com as futilidades dos papéis, das equações, dos colegas... Não tinha tempo para amar. Só á tarde, quando regressava, se dedicava a ela. Nunca lhe passou pela cabeça uma única vez que ela não precisasse dele, que o odiava. Ele não a queria para companhia, sequer, apenas uma imagem para onde pudesse olhar sem medo, sem vergonha. Era a porra de uma fotografia com alma. Desprezava o seu criador, o seu egoísmo, metia-lhe nojo um ser assim. E depois, mesmo quando era ingénua, mesmo quando sentia saudades de Daniel, ele refugiava-se dentro do ego e saía de lá com mais correntes e grilhões, onde ia ele buscar aquelas ideias, não sabia. Mas sempre que Daniel tinha mais uma crise existencial, Sara saía a perder. Agora, já nem podia sair à rua. Estava sempre em casa. Sempre fechada no quarto. A pouco e pouco, as paredes ficavam mais juntas, engoliam-na. Tudo por culpa daquele visco que se arrastava pelo chão, em pensamentos deprimentes. Agora fechava os olhos, abria os braços, ela já sabia o procedimento. Agora murmurava para si mesmo, em Inglês. Sempre em Inglês. Era assim que falava consigo mesmo, patético, não é? A língua estranha dava-lhe refúgio, deixava-o ser outro alguém, alguém melhor.

Sara olhou pela janela e esperou que acabasse.

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Daniel conseguia sentir a respiração suspirante de Sara. Inalava o seu protesto a cada respiração lenta. Fechava os olhos e o mundo desaparecia outra vez. Abria-os e lá estava tudo no mesmo lugar de sempre. Fechava-os outra vez e voltava à escuridão. Aqui, podia abrir os braços e receber o mundo que o repelia durante as horas acordado. Aqui, podia ser ele mesmo, sujeito ao seu próprio julgamento. Aqui, podia perceber porque é que o mundo demorava tanto a revelar-lhe o óbvio, aquilo que Daniel já tinha percebido há tanto tempo. Era uma questão de tempo, tinha de ser. Era tudo tão perfeito que não podia ser apenas um delírio. As coisas aconteceriam como tinham de acontecer, como Daniel as via na sua mente. Procurou respostas. "O teu esforço em permaneceres como és é o que te limita" pensou. Mas era tão difícil sair de si próprio. Só a ideia o aterrorizava. "E se não conseguir voltar? E se o meu corpo não me aceitar de volta?" Não. Tinha de haver outro modo, outra saída. Cultivava paciência, mas já estava farto de esperar. Porque demorava o universo tanto tempo a dar-lhe o que queria? É difícil naquelas noites de desespero, nos olhares indiscretos a outros. Está lá tudo, tão perto, mas Daniel não consegue alcançar. Queria escondê-los a todos, prendê-los, nunca mais lhes pôr a vista em cima. Não tinham o direito de se pavonearem assim, à sua frente, gozando, rindo... Todos os que conhecia, todos os que não conhecia. O mundo era uma gigantesca festa e todos estavam convidados menos ele...

Mas tinha Sara, ou pelo menos o seu espelho, e a ela não a ia deixar fugir...

Abriu os olhos e Sara percebeu que era a última vez que via a luz do Sol.

terça-feira, setembro 19, 2006

Can't you see them?





"Terça-feira, 14 de Julho de 2006


O meu nome é Rita. Não tenho outro, nem continuação. Só Rita. Por vezes posso parecer que tenho mais nomes, mas não passa tudo de imaginação, brincadeira, desempenhar papéis que não são mais que disfarces, máscaras.

Durante 3 anos e meio, estas folhas de papel foram casa de hóspedes desses personagens e de mim mesma, que no fundo é dizer uma e a mesma coisa, que sou eu. Todas as loucuras que me passaram pela cabeça foram assentadas com pena e tinta neste caderno vermelho, de cor desbotada. Não posso dizer o mesmo das loucuras de outros, como a Violeta ou o Microkid, principalmente ele, que nunca concordou com esta ideia. A Violeta achou uma boa medida, mas depressa se esqueceu de a pôr em prática, como se esquece de tudo o resto...

Há outros, muitos outros. Nem eu os conheço a todos. Ás vezes penso que são infinitos, que há um exército deles á espera de me substituir, ansiosos por andar ao Sol e á chuva. Mas não podem, não sem minha autorização, tenho de os manter na ordem ou seria o caos. Saltariam por todos os lados, entupiriam-me as artérias, roubar-me-iam as sinapses e espalhariam a desordem. Por isso têm de ficar quietos. Até eu os chamar.

E, no entanto, quem me garante que não sou apenas mais um? O que me leva a pensar que não passo de mais uma peça do puzzle, com manias de grandeza? Talvez a Rita exista tanto como a Violeta, ou o Homem-Fantasma, ou a Princesa Pi, etc, etc...

Mas não quero nem posso falar mais nisto. É só a minha imaginação a tentar que lhe prestem atenção. É tão egoísta! Odeio-a! Faz-me esquecer toda a gente, faz-me não ligar, não me interessar por nada! Afasta-me dos outros e por isso é que comecei a escrever esta página em primeiro lugar. Tenho de lutar contra ela, resistir-lhe. Se a conseguir enfrentar no território de papel, onde tem a vantagem, posso dizer que consegui alguma coisa. Ou não, não sei...

Pela última vez, a minha imaginação fez-me magoar alguém. Alguém de quem eu gostava muito. Era um bom rapaz, e tinha um nome engraçado, mas quando acabei com ele, não sabia como se chamava nem quem era.

Acho que o devorei.

Devorei-o por dentro, roubei-lhe tudo, pilhei-o até á última moeda de ouro. Quando acabei, era uma casca vazia. Mas isso não é o pior. O pior é que eu lembrei-me. Lembrei-me de ter feito uma coisa assim antes, lembrei-me de ter gostado.

Não me lembro a quem o fiz, não me lembro porquê...porquê..?

Desde que me chamaram louca, que os homens de bata me disseram que o meu não-sei-o-quê na parte de trás da cabeça era hiper-desenvolvido, blá blá blá. Desde aí que eu percebi que não ia ter direito a uma vida normal. Tinha só uns 5 anos, o que é que eu podia saber sobre uma vida normal? Bem, sabia uma coisa. Qualquer observação dessa vida teria de ser feita do lado de fora. Porque outra razão me estariam a dizer que era hiper? As coisas normais não são hiper, são normais. Porque é que me levaram ao homem de bata? Porque é que os meus pais pareciam tão preocupados? Não era normal. Logo, eu não era normal. Pura lógica.

Depois vieram os comprimidos, mas não tão comprimidos como a vida que eu estou a tentar espremer na tinta que resta nesta caneta preta. Eram amarelos e difíceis de engolir. Faziam-me engasgar, mas os meus pais não queriam saber. Tinham deixado de confiar em mim desde que souberam que eu era "diferente". A maior parte do tempo não me ligavam nenhuma, mas ás vezes precisavam que eu fizesse alguma coisa. Nessas alturas, fingiam carinho.

Depois batiam-me quando eu os vomitava. Ou quando eu não conseguia dormir. Ou quando não tinha fome mas ainda tiha comida no prato. Ou quando não me apetecia ir brincar com os meus amigos, ou quando tinha uma nota muito baixa na escola, ou quando tinha uma nota demasiado alta! Puniam-me por qualquer comportamento fora do padrão, fora do normal, portanto. Se eles soubessem... Se soubessem o que causaram, as... criaturas que libertaram. Uma por cada injustiça, uma por cada nódoa negra. Todas as noites, quando fingia dormir, abria-se uma porta e alguém vinha consolar-me. A princípio era só a Violeta. Coitada, era tão tímida e frágil, não fazia ideia de como me abraçar, sequer. Tive de lhe ensinar tudo. A falar baixinho, a dar beijinhos, a dormir quietinha. Ela ganhou a minha confiança, e atraiu outros. Todas as noites, o meu quarto abarrotava enquanto os meus pais ressonavam num sono sem sonhos. Jogava com eles, brincava, dançava, tudo em silêncio, sem um som. Claro que nem todos gostavam de mim. Mas mesmo os que me desprezavam mantinham-se enconstados á parede, observando.

Aos 12 anos, tive a minha primeira crise. Estava no recreio da minha escola. Sozinha, como sempre. Estava a chorar. O Monstro tinha dito alguma coisa que me fez chorar. Lembro-me de estar zangada com ele. Gritei com ele, mas não me ouviu. Bati-lhe, mas chorei ainda mais, agora doía-me a perna. Uma professora aproximou-se de mim. Não a ouvi chegar-se. Mas o Monstro ouviu. Tentei salvá-la, tentei dizer-lhe pra não se chegar. Mas ela agarrou-me o ombro e ele atacou. Mordeu-lhe a mão com tanta força, que foram precisos dois funcionários para a soltar. Só que já não era uma mão. Era um apêndice inchado e vermelho que pulsava. Senti-me a desmaiar ali mesmo. Quando voltei do hospital, tinha passado uma semana. Levei tanta porrada que voltei lá passados dois dias.

Entretanto o Apolinário anda por aí, enquanto eu não faço mais que escrever as minhas memórias. Talvez ajude. Acho que tenho sobretudo medo de morrer. Não, não é bem isso. Tenho antes medo de ser esquecida. Tenho medo de ser anónima. De não me distinguirem numa multidão. Mas o Apolinário anda por aí. Deve ter medo também.

Desculpa.

continua..."

terça-feira, julho 25, 2006

Intermission for the imaginary lovers

Qual é o contrário do amor?

É o ódio? Não pode ser. Se o amor é a união mais forte entre duas pessoas, então o seu contrário deve ser aquilo que mais as afasta. O ódio não afasta as pessoas. Pelo contrário, atrai-as. Cria uma ligação entre elas. Quando dizemos que odiamos alguém, estamos inevitavelmente ligados a essa pessoa. Portanto, não é o ódio, nem nenhuma emoção.

- O medo.

O quê?

- O medo afasta as pessoas. Não as aproxima. O medo pode ser o contrário do amor.

Como é que sabes? Tu nunca amaste. Nunca amaste ninguém.

- Nem tu! Só pensas que amaste. Chiça! És tão indeciso que nem sabes o que sentes!

Então... o medo isola as pessoas e o amor junta-as? É isso?

- Talvez... Mas o amor nem sempre é união. Muitas vezes, também afasta.

Nesse caso, o amor é o seu próprio contrário. Não pode ser. O universo tem sempre um oposto distinto para tudo. Cima, baixo, positivo, negativo. Se uma coisa é oposta dela mesma, está deslocada. Não pertence aqui.

- No entanto, cá estamos nós a discuti-la. O que é que estás a fazer em casa a estas horas?

Não me apetece sair. Prefiro ficar sozinho.

- Então, o que estou eu aqui a fazer?

Ninguém te convidou. Podes-te ir embora.

- Quem me dera. Mas não me deixas. Estou presa a ti.

...Eu sei... Quem me dera que não estivesses.

- Também eu. És aborrecido e estúpido. Só precisas de mim para não te ires completamente abaixo. És patético. Eu nem sequer sou real.

Vai-te embora.

- Tu dizes isso, mas não é isso que queres.

É sim. Vai-te embora, por favor.

- Já disse que não consigo. Estás a mandar-me ficar.

Vai-te embora! Deixa-me sozinho!

- Está bem... Mas sabes que eu vou voltar... Porque se eu não voltar...ja sabes...puff...

...Eu sei...não te afastes muito...

- (suspiro) Não te preocupes. Não tenho nenhum sítio para ir...Ouve... Tu não és patético. Mas... também não és nada de especial... Desculpa. Adeus.

domingo, julho 16, 2006

Lover Boy & Heart-Break Girl

o meu primeiro filme em stop-motion. coisa muito simples mas gostei de o fazer.

sexta-feira, julho 14, 2006

Everybody loves you when you're pink


E todas as noites, João Apolinário se sentava em frente ao computador. Os dias eram ocupados com assuntos maçadores e cansativos, como a escola, no caso dos dias úteis, ou o estudo, aos fins-de-semana. Mas á noite, por mais trabalhos que permanecessem inacabados ou qualquer teste importante no dia seguinte, era altura de descanso. Era nestes momentos que Apolinário se dedicava a conversar com amigos em chats (a conversa durante o dia nem sempre era suficiente) e a explorar a rede em busca daqueles pedaços de multimédia que o fizessem rir alto, fossem vídeos, músicas ou imagens. Mas era também á noite que Apolinário se transfigurava num outro ser. Que ser era esse, dependia exclusivamente da sua disposição ou da posição em que se encontrava. Mas a sua própria personalidade se adaptava á personagem que decidia encarnar. E com uma estante recheada de CD's com os mais variados jogos, a escolha era muita. Apesar de ser conhecedor de muitos géneros, a sua modalidade favorita era pegar numa arma e disparar nas suas preocupações e ansiedades. FPS, First Person Shooter, um jogo onde podíamos matar, esfolar e perder qualquer vestígio de humanidade, mas ainda assim sermos nós próprios, escondidos atrás da arma, com a cara oculta. Era o escape perfeito para aqueles dias de raiva e de frustração. Dias como hoje. Hoje Apolinário ia ignorar os amigos que o chamavam para a conversa, ia esquecer os alívios cómicos (não tinha grande vontade de rir). Por uma noite, Apolinário ia simplesmente esvaziar as mágoas inflingindo dor em inimigos pixelizados, anónimos o suficiente para se poderem parecer com os seus inimigos no mundo real.

Que FPS escolher? Não interessava realmente. A filosofia de todos é uma só. Só vives se matares. Tudo o resto é supérfluo. Não importa o objectivo, não importa a recompensa, nem sequer importa a TUA filosofia. Tudo o que sabes é que tens uma arma e todos os que encontras te querem impedir de conseguir o que queres (seja isso o que fôr). Por isso, Apolinário escolhe uma caixa com o nome Unreal Tournament. Abre-a e o computador ingere o disco, com um ruído metálico. É o FPS perfeito. Nada de histórias romanescas, ou demandas épicas. Apenas um mapa, tu e os teus némesis. O único objectivo é matá-los e sobreviver-lhes. E é divertido como o caraças!

Bang! Bang! Há duas explosões por cada tiro dado pela tua arma. Aquela que vês no peito do adversário e aquela que ouves na tua cabeça, que rebenta no âmago das tuas desilusões. Bang! Apolinário dispara. Tudo é deixado para trás e o que sobra não é um rapaz, é um predador. Os seus olhos vêem apenas sinais de movimento. Os seus ouvidos estão concentrados nas emboscadas que lhe são feitas. Os seus movimentos são precisos e planeados. A máquina de matar perfeita... pelo menos em teoria. Claro que Apolinário nunca teria coragem de pegar numa arma verdadeira e disparar sobre os seus semelhantes. Isso seria... errado...

A ilusão de carnificina é suficiente. Até á meia-noite, Apolinário cura os seus males à força da pistola.

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O dia seguinte não ajuda a manter o alívio que horas em frente ao monitor proporcionaram. Os mesmos fantasmas que o assombravam ontem, permanecem hoje em seu redor. Pudera! Com a mesma rotina todas as semanas, as preocupações sabem sempre onde o encontrar a determinada hora. Neste momento pairavam sobre o autocarro Nº 3, no seu caminho para o terminal. Lá dentro, Apolinário amaldiçoava mais um ignorante entredentes e só interrompeu esta actividade quando o autocarro parou e pela porta da frente entrou uma rapariga.

Tendo em conta a situação, Apolinário não tinha grande paciência para apreciar medidas femininas, mas não foi por isso que ela lhe chamou a atenção. Foram as cores... O cabelo cor-de-rosa (da cor das pastilhas elásticas) caía-lhe sobre os ombros e testa. Os óculos escuros tapavam-lhe os olhos, mas logo abaixo podiam-se ver os lábios pintados de verde-brilhante (até faziam reflexo). Para contrastar ainda mais, a camisola era preta e tinha uma enorme cara branca e esqueléctica estampada á frente, que parecia lançar um olhar maléfico directamente para Apolinário. Tinha pelo menos meia-dúzia de pulseiras em cada pulso, de todas as cores e feitios. O ombro direito estava tapado por um pedaço de tecido atado. Se descêssemos mais, veríamos ainda uma saia comprida, com bolinhas brancas e folhos, mas não comprida o suficiente para tapas os tènis azuis rotos e gastos. Trazia ao ombro uma mala a tiracolo enorme e, a julgar pela forma como a carregava com dificuldade, completamente cheia.

Ainda mal Apolinário tinha conseguido assimilar o choque, a rapariga aproxima-se do seu lugar e senta-se mesmo ao seu lado. Isto era outra coisa que irritava Apolinário. Bastava uma espreitadela em redor para ver que o autocarro estava quase vazio. Havia bastantes lugares onde ela se podia sentar sozinha. Porque raio é que o tinha "prendido" ali, virado para a janela, forçado a pedir licença quando quisesse sair? Além disso, aquele tipo de pessoas deixavam-no nervoso. Ainda mais quando ela afastou o cabelo com a mão, colocando-o cara a cara com uma orelha cheia de piercings (essas coisas eram o que mais o impressionavam pela negativa), abriu a mala e começou a beber de uma garrafa de sumo azul que tirou de lá.

Apolinário tentava não olhar, mas quando a rapariga começou a alargar o decote com a mão para assoprar no peito, não resistiu a lançar um olhar espantado. Ela apanhou-o, divertida e disse:

- Está uma grande brasa, não achas? Estou farta de suar. As cidades são muito quentes. Seria de esperar que os autocarros andassem com a porta aberta pelo menos!

Esta última observação foi menos para Apolinário e mais gritada para a frente do autocarro, onde o condutor a ignorou, assobiando.

- Pronto, mas nem toda a gente tem senso-comum. - Olha para Apolinário, que sorri e acena com a cabeça afirmativamente - Epá! Desculpa! Sou mesmo mal-educada, ás vezes! Chamo-me Rita. Rita Catita. Queres um bocado do meu sumo?

- Hmm, não. Obrgado. Chamo-me João.
- João?! Coitadinho! És mais um num milhão! (risos) Os pais de hoje em dia não são nada originais, pois não? És João quê?
- Apolinário.
- Ah! Isso sim! É um nome giro. Apolinário. Apolinário.

Enquanto Rita repetia o seu nome para si mesma, divertindo-se sozinha, Apolinário só pensava porque é que estas coisas lhe aconteciam a ele. Nunca falhava. Todos os malucos do Barreiro acabavam por ir sempre ter com ele e meter conversa. Seria da água de colónia? De qualquer modo, estava na hora de abandonar a companhia da menina cor-de-rosa porque a próxima paragem era a sua.

- Hem... Com licença. Vou sair.
- Hã? Onde estamos?
- Perto da Rua da Estação.
- A sério?! Então também tenho de sair! Podes ajudar-me aqui a fechar a mala?

Apolinário não percebeu bem à primeira. Depois, ao vê-la tentar enfiar novamente a garrafa num dos compartimentos da mochila, cheia de papeís, comida e objectos estranhos, empurrou também e, com esforço, conseguiu fechá-la.

- Muito agradecida. - depois, antes de sair, para o condutor - E obrigada por uma viagem fantástica! Espero que a próxima pessoa que se sentar aqui não se incomode com o suor!

O condutor lançou um olhar furioso e quase entalou Apolinário na pressa de fechar a porta traseira.

- Bem, mas que temperamento! - comentou Rita - Estás bem?
- Sim... estou.
- Vais subir? Por aqui?
- Hmm... sim. Tu também?
- Agora vou! Anda daí!

Mas isto nunca mais acabava? Quando é que ela o ia deixar em paz? Não lhe agradava nada que ela visse onde mora. Mas que remédio tinha ele agora? Tinha de ir para casa, de qualquer maneira. Subiu a colina na companhia da estranha rapariga. No topo, estava a sua casa, o edifício que podia ser visto de qualquer ponto do Barreiro, como dizia o Daniel. E ele, que morava no último andar, tinha vista previligiada de toda a cidade.

- Apolinário! Sabes uma coisa? Não és muito conversador.
- Hã... pois. O dia não me correu ás mil maravilhas.
- Ah, estou a ver! Um dia de cão, portanto? (risos) Deixa lá. Isso amanhã corre melhor.
- Isso foi o que pensei ontem.
- Ahá, mas aí é que está! Ontem ainda não me conhecias. Assim, amanhã já tens a história da "rapariga doida do autocarro" para contar aos teus amigos. (risos) Depois eles perguntam se eu era "bonita". E tu dizes: "Eh, mais ou menos". Claro que depois eles querem saber se eu era "boa". E aí já vais pensar duas vezes, porque apesar de Deus não me ter dado grandes atributos, não sou nada de deitar fora. E possivelmente vais-te sair com um comentário do género: "Era comestível" (risos)

Apolinário olhava para ela espantado.

- Hã? Apercebeste que acabaste de ter uma conversa sozinha?
- Eu sei. Acontece-me ás vezes.
- Bem, eu fico por aqui.
- Oh. É aqui que vives?
- ...Não. Vou ter com um amigo meu. Temos um trabalho de grupo para acabar.
- Ah! Ok! Não te chateio mais! Adeus!

A parte mais estranha deste já por si estranho encontro foi sem dúvida quando ela o abraçou na despedida. Ele retribuiu desajeitadamente, mas assim que se viu livre, apressou-se a entrar no prédio e nem olhou para trás. Que gente mais doida.