segunda-feira, maio 08, 2006

Crossed Windows


O rapaz de olhos azuis murmurava enquanto procurava a chave. Eu continuava a sentir-me ausente e leve como uma pena. Todo o tipo de pensamentos descoordenados e sem nexo me vinham à cabeça e eu ria-me de todos eles, do rídiculo que eram. Cheguei a imaginar que alguém, um ser místico, sei lá, me havia drenado todas as "partes más" do meu ser, os medos, preocupações ou ansiedades, e as substituiu por, nada mais, nada menos que gelado de framboesa, que me escorria pelas veias, fresco e viscoso e me enchia de alegria.
Ouviu-se um clique quando a fechadura finalmente cedeu e o rapaz abriu a porta. Estava preparado para uma sala luminosa, cheia de brilho, digna do reino dos céus... não para o que vi. Fiquei um pouco confuso quando observei o outro lado da porta para encontrar um apartamento imundo, uma divisão cheia de ferrugem e bolor, obviamente descurada e contrastando fortemente com o imaculado corredor em que me encontrava. Mesmo á minha frente, havia uma mesa de desenhador, daquelas que os arquitectos usam, cheia de papéis desorganizados e com um prato de comida vazio em cima. Ao lado, no chão, encontrava-se um copo apenas com umas gotas do que parecia sumo e laranja. Mais à frente, havia uma cozinha, cuja única delimitação em relação ao resto era o próprio balcão, também cheio de tralha. Não encontrei muito mais. A sala era pequena. Um sofá individual vermelho estava encostado a um cadeeiro de pé, com pilhas de livros que o rodeavam, formando uma pequena muralha.
Descobriam-se ainda, aqui e ali, objectos sem ligação entre eles, como um globo terrestre de madeira, com alguns dos continentes já apagados; um giradiscos com aparelhagem, e dezenas de discos cuidadosamente arrumados, um inédito comparado com o que tinha visto até aí; um computador com uma aura amarelada, de tão antigo e mais uma mesa, de jantar, com cadeiras em redor, todas diferentes umas das outras. A luz entrava por janelas parcialmente tapadas com tábuas a formarem cruzes, ocultando grande parte da paisagem lá fora.
Perdia eu tempo nestas observações, já o rapaz se encontrava a pendurar as chaves num cabide próprio, seguindo depois para o lavatório a fim de lavar as mãos, sujas de sangue do felino sacrificado. Não me ligou nenhuma enquanto não completou uma espécie de ritual, em que esfregava vigorosamente cada centímetro de pele com uma escova minúscula. Depois enxaguava, ensaboava, enxaguava novamente, mais sabão, e uma última passagem por água. No fim, ficou a admirar as mãos limpas por um minuto antes de olhar para mim.
- Entra. Podes sentar-te. - indicou-me uma das cadeiras.

Não fiz cerimónias. Coloquei um pé em cima das tábuas rangentes, mantendo o outro na brancura fria do corredor. Uma onda percorreu o meu corpo, desde a ponta dos pés até aos cabelos. Senti um arrepio desagradável na espinha. Comecei a suar. O rapaz não estava a ver-me, limpava a mesa de jantar com um pano amarelo. Tentei arrastar o outro pé para esta sala, mas este não me obedecia. Fiz tanta força que me vieram lágrimas aos olhos. Já tinha a cara encharcada, quando o rapaz finalmente largou tudo o que estava a fazer para me ajudar. Tentou apanhar-me, mas a minha queda foi mais rápida. No segundo seguinte, estava no chão, a debater-me com o meu próprio corpo, o outro pé ainda se recusava a abandonar o corredor.

O rapaz agarrou-me a cara, abriu-me os olhos com os dedos e colocou-me a mão esquerda na garganta.

- Raios! Esqueço-me sempre! Vá, caraças! Vomita!

Não me chegou a repetir a ordem. Senti a boca quente quando o estômago rejeitou o conteúdo e o expeliu. Sujei ainda mais o chão verde-podre do apartamento. Senti imediatamente um alívio. O rapaz esperou por mais réplicas antes de me ajudar a levantar e me sentar numa cadeira, eu ainda com espasmos. Não cheguei a perder a consciência, mas não conseguia falar, ouvir ou sentir.

1 comentário:

Anónimo disse...

Ora bolas o rapaz misterioso devia ser sádico ^^''

Está ficar misterioso e a história ainda nao está a enmerdar ... continua =D