sábado, maio 13, 2006

Rubik


Não lhe perguntei mais nada. Não valia a pena. Depois de dez minutos de conversa inútil, não tinha ficado nada a saber da pessoa que me olhava do outro lado da mesa ou da situação em que me encontrava. Qualquer pergunta que lhe fizesse, ele defendia-se dizendo sempre a mesma coisa.

- Não posso. É parte da história. Ele depois conta-te.

Por isso, ali ficámos, calados, escutando apenas os ruídos da cidade lá fora, o som dos carros a buzinas e das conversas perdidas de alguém. Via o Sol descer lentamente atrás das tábuas na janela e tentava adivinhar as horas. "Já devem ser pelo menos 7 e meia", pensava, preocupado. "Os meus pais devem estar em pânico. Era suposto estar em casa há horas". Mas, apesar de me custar fazê-los sofrer assim, não fiz qualquer menção de me ir embora. Isto, no meu ponto de vista, podia dever-se a duas coisas: 1) tinha algum receio de tentar abandonar este sítio, talvez por temer a reacção do rapaz que me mantinha aqui como se fosse uma tarefa que lhe fora atribuída e 2) não posso negar que o meu espírito tinha curiosidade em saber o que estava ali a fazer, porque tinha sido conduzido pelos eventos a este cenário grotesco e colocado nesta posição. De quem estávamos á espera e que história tinha para me contar. Como é que me envolvia a mim?! Por isso, fiquei e lutei contra mim mesmo para parecer o mais calmo e sereno possível, acalmando a tempestade de nervos que ia crescendo com o passar dos minutos dentro do meu peito. Olhei para a frente. Todo este tempo, o rapaz nunca tinha tirado os olhos da minha pessoa. Cravava-me aquelas órbitas de sapo na mente, analisando, estudando e só quebrava a sua concentracção quando as circunstâncias o levavam a piscar os olhos, o que mesmo assim parecia acontecer apenas de 5 em 5 minutos. Eu limitava-me a engolir em seco e a desviar a minha atenção para outras paisagens do apartamento. Por fim, ele levantou-se.

- Lembrei-me de uma coisa. Volto já. Não saias daí.

Não lhe respondi, mas ele parecia certo que eu não iria a lado nenhum. Dirigiu-se à porta por onde tínhamos entrado e abriu-a novamente, para depois se perder mais uma vez no corredor branco. Senti um alívio quando a fechou atrás dele. A solidão acalmava-me um pouco, agora já não me sentia observado. Aproveitei para me tentar levantar. Calmamente, apoiei os braços nos lados da cadeira e ergui-me uns centímetros do assento. Ainda tinha as pernas dormentes, como quando nos sentamos de cócoras durante muito tempo. Não sentia o chão em que pisava, por isso ia-me agarrando a tudo o que encontrava, na minha tentativa de não perder o equilíbrio. Ajoeilhei-me, esfreguei as pernas e belisquei-as até começar a sentir alguma coisa. Depois disso, a sensação foi aumentando por si só e já conseguia andar. Afastei-me da mesa e comecei a explorar o espaço. Além da zona onde se encontrava a cozinha, as cadeiras e tudo isso, havia outro canto, mais escuro, que me escapou quando entrei. Era mais abafado e estava cheio de tralha empilhada e tapada com lençóis. Pelo menos maior parte. Havia caixotes com brinquedos partidos e toda a espécie de pequenos aparelhos estragados. Chegava mesmo a ver uma máquina de lavar roupa, esquecida debaixo de um velho divã a cair de podre. Num desses caixotes, encontrei um rasgo colorido que me chamou a atenção. Fui cuidadoso a colocar a mão e retirei de lá um pequeno cubo com pequenos quadradinhos autocolantes a cobrir as faces. Reconheci imediatamente como sendo um cubo de Rubik, daqueles quebra-cabeças quase impossíveis que fez furor nos anos 80. Quando era novo, tinha tido um, mas nunca o tinha conseguido resolver por isso tinha-me farto dele rapidamente. Agora, sentia-me nostálgico, por isso comecei a decifrá-lo, rodando as faces de cá para lá, de lá para cá e assim por diante. Fiquei viciado com o jogo e dava por mim a girá-lo ao acaso, sem reflectir no movimento mais acertado para o resolver. Assim estava eu tão entretido, que não dei pela porta no outro lado do apartamento, que se abra lentamente. Também não vi a figura que entrou até se dirigir a mim e me tocar no ombro. Nesse momento, assustei-me e deixei cair o cubo.

- Ei! Tem calma! Ninguém te quer fazer mal. - disse um outro rapaz, com uma voz suave e relaxada. Abaixou-se para apanhar o cubo, e observou-o na mão. Depois, olhou para mim, sentado no chão.

- Desculpa se te fiz esperar. Sou o Luís.

Estendeu a mão num cumprimento, mas não lhe consegui retribuir. As minhas pernas pareciam ter perdido novamente todas as forças com o susto e era-me impossível levantar do chão. Contudo, o Luís parecia ter levado aquilo como um insulto.

- Não tens de me cumprimentar, se não quiseres. Mas não te fiz nada de mal, pois não? Não sei o que o tótó te disse, mas só queremos conversar contigo. Depois, podes-te ir embora.

- Não é isso... - murmurei, sem o olhar nos olhos.
- Hum...?
- Não me consigo levantar. As minhas pernas estão dormentes.
- A sério? - parecia divertido - Como é que isso aconteceu?
- Foi por causa de qualquer coisa que o outro rapaz me deu ou algo assim. Caí no chão e vomitei. Depois, fiquei com o corpo todo dormente.

O sorriso desapareceu rapidamente.

- Dizes que foi o outro rapaz que te fez isso?
- Bem,... sim. Acho que sim.

Foi por essa altura que se ouviu o som de uma porta, indicando o regresso do rapaz de olhos azuis. Esfregava o braço esquerdo, que estava vermelho e falava consigo próprio, lançando pragas a Bob, provavelmente. Olhou para a mesa e parou quando não me encontrou lá.

- Ei! - gritou o outro rapaz.

Isso chamou-lhe a atenção para nós. Caminhou na nossa direcção.

- Ah. Já chegaste. Vens atra...
- És capaz de me explicar - interrompeu - porque é que eu viro as costas um par de horas e tu quase matas o pobre rapaz?!

O rapaz de olhos azuis olhou para ele e depois para mim, tentando compreender.

- Porque é que estás sentado no chão?
- Como se tu não soubesses, idiota! O que é que eu te disse antes de me ir embora?! Nada de drogas! Queria que ele estivesse sóbrio!
- Mas eu não lhe dei nada!
- Não é o que ele diz!

O rapaz de olhos azuis olha novamente para mim.

- Qual é a tua? Eu não te fiz nada.
- Como assim? Eu quase desmaiei. Ali mesmo, há bocado.
- A culpa disso foi só tua!
- Não grites com ele! Se fizeste merda, a culpa é tua!
- Já te disse que não fiz nada! Ele ficou assim porque é estúpido. Quando eu entrei aqui, ele foi-se esconder na Sala dos Relógios e respirou o ar do corredor. Eu trouxe-o de volta e fi-lo vomitar a mistura toda, mas é claro que ainda sente os efeitos. Já sabes como as pessoas não estão habituadas áquilo. Aconteceu o mesmo ao Apolinário.

Sobressaltei-me quando ouvi o nome do meu amigo.

- Apolinário?! - exclamei - O Apolinário esteve aqui?!

Ambos me olharam de cima. O segundo rapaz colocou um ar pensativo enquanto continuava a lançar o cubo de Rubik de uma mão para a outra.

- Ok - disse, por fim, com um sorriso.
- Ok o quê? - perguntou o rapaz de olhos azuis.
- Ok. Está tudo bem. Não há crise. Não tiveste culpa. - passou-lhe o cubo para as mãos.
- Eu... o quê? Eu sei que não tive culpa! Eu salvei-lhe a vida!
- Fixe.
- Fixe?
- Ei! Eu fiz uma pergunta e estou farto que não me respondam a nada aqui! Como é que conhecem o Apoliário?
- Calma. Calma. - disse-me o segundo rapaz. - Já cá estou, podemos começar. - dirigindo-se ao rapaz de olhos azuis - Ajuda-o a levantar-se e trá-lo aqui para a mesa. Sempre estamos mais confortáveis.

Com alguma relutância, o rapaz de olhos azuis obedeceu. Poisou o cubo na caixa onde o encontrei e, pegou em mim como se eu fosse um inválido e arrastou-me sem qualquer delicadeza para a cadeira mais próxima. Sentou-se ao meu lado esquerdo e em minha frente já estava o outro rapaz.

2 comentários:

JAAS disse...

este novo post vem substituir o manufactured air, que eu achava estar muito fraco mesmo. espero que este esteja melhor, pelo menos eu gostei mais. agradeço qualquer crítica. 8)

Anónimo disse...

Hum ficou melhor sim, mas também não desgostei do outro ... parece-me bem a forma banal que estás a dar a esses senhores que lidam com coisas misteriosas, normalmente também eles são misteriosos mas gosto disto =)

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